Dinheiro vivíssimo
Ninguém mais anda com dinheiro vivo. Táxis são pagos com Pix. Motoristas de aplicativo são pagos automaticamente, a partir das informações do cadastro. Restaurantes são pagos com cartão. Até lavador de carro fornece seu telefone ou CPF para transferência.
Eu já fui abordado na rua por mendigo que rebateu dizendo que aceitava Pix quando mostrei as mãos vazias e falei que não tinha nada. Faz muito tempo que a minha carteira está vazia de cédulas. Adotei uma caderneta menor, o bolsão grande carece de utilidade. Nenhuma empresa dá salário em maços de notas - cai na conta do funcionário.
É um risco, uma temeridade, sair do banco com os bolsos forrados. Somos cada vez mais discretos e contidos nos caixas 24 horas. Por isso, a filmagem da entrega de um maço de dinheiro por parte de Airton Souza (PL), prefeito eleito de Canoas, a uma pessoa ainda não identificada, exige explicações. É uma cena absolutamente incomum e fora do padrão cotidiano.
No vídeo, que circula desde domingo em aplicativos de mensagens e redes sociais, Airton Souza, num carro, tira um bolo de notas de R$ 100 de dentro da calça e repassa a outro ocupante do veículo. É estranho carregar uma soma assim na cueca. Além de ser um tanto desconfortável, a cueca nunca corresponderá a um bolso. Parece, desde o princípio, algo escondido, escuso, de motivação vergonhosa.
É estranho oferecer dinheiro, sem nenhum rastro de transação bancária. Parece sem sentido, já que Airton Souza alegou que se tratava de compromissos particulares. Segundo seu depoimento para a Rádio Gaúcha, o dinheiro era proveniente de reservas econômicas e tinha como destino o pagamento de uma dívida pessoal.
Quando eu pago alguma pendência, faço questão de optar pela transferência para ter o registro da operação. Com o comprovante, a dívida não pode ser contestada. É estranho não saber a data, não indicar a quantia, para quem foi, não especificar a natureza da quitação. Não se esquece uma cobrança. Cobranças doem. É estranho que o fato tenha ocorrido no meio de uma eleição acirrada.
É estranho alguém querer filmar isso: qual a utilidade de documentar o incidente se era algo normal e lícito? Serviria como garantia de quê? Se o prefeito eleito estava sofrendo alguma chantagem - não dá para desconsiderar nada -, é melhor expor a privacidade do que correr risco de sua chapa ser cassada.
Precisamos aguardar o parecer das autoridades, para ver se a realidade foi mesmo inverossímil, se houve sensacionalismo num gesto inofensivo de boa-fé, sem macular a reputação dos envolvidos, ou se existe uma história misteriosa que não foi contada por trás da negociação.
Quem irá responder às perguntas não sou eu, será o Ministério Público Eleitoral. A pedido deste, ontem, a Polícia Federal anunciou que abrirá uma investigação para apurar o caso.
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