06 DE JULHO DE 2019
JJ CAMARGO
PRISÃO DOMICILIAR
O que acontece quando a idade deságua na inevitável perda da autonomia.
Os que crescem inconformados com o tamanho que têm e que não lhes basta não entenderão, nunca, que o crescimento tem os limites impostos pelo talento na seleção das escolhas, pela parceria animada ou não e, adiante na vida, pela preservação da saúde indispensável para manter o entusiasmo e a produtividade. E que chegará um momento em que a vontade de fazer pode permanecer igual, mas a energia para pôr em prática o planejado começa a fraquejar. E não há humor que resista a esta descoberta.
Alguns grandes empresários nunca conseguem delegar tarefas essenciais porque não confiam que alguém possa ser tão determinado e perfeccionista quanto eles conseguiram - e com isso chegaram aonde chegaram -, e se tornam amargos e intransigentes. Sempre que encontrares um velhinho rico e ranzinza, podes apostar que ele se considera insubstituível e a sua prole, uma decepção.
Quando a idade deságua na inevitável perda da autonomia, a relação familiar que sempre preservou uma distância convenientemente respeitosa sofre um grande estremecimento ao perceber que o autoritário herói da vida toda se transformou (e a impressão que se tem é que isso ocorreu de uma hora para outra) num velhinho frágil com marcha insegura e propensa a tombos frequentes.
A proibição sumária de dirigir, em geral elaborada no conluio da esposa com o médico da família, costuma ser a primeira castração de privilégios, e a presença de um estranho, para tomar conta do carro que até ontem ele conduzia, é a materialização de tristes novos tempos, em que nem destino, nem trajeto serão mais de sua livre escolha. Nada arrasa mais um ex-todo-poderoso do que depender dos outros para locomover-se. A restrição de movimentos e a necessidade de ajuda para os deslocamentos mais elementares liquidam com a última reserva de autoestima. Porque é duro admitir fragilidade, quando a ilusão de força era a última que lhe restava.
A proibição sumária de dirigir, em geral elaborada no conluio da esposa com o médico da família, costuma ser a primeira castração de privilégios, e a presença de um estranho, para tomar conta do carro que até ontem ele conduzia, é a materialização de tristes novos tempos, em que nem destino, nem trajeto serão mais de sua livre escolha. Nada arrasa mais um ex-todo-poderoso do que depender dos outros para locomover-se. A restrição de movimentos e a necessidade de ajuda para os deslocamentos mais elementares liquidam com a última reserva de autoestima. Porque é duro admitir fragilidade, quando a ilusão de força era a última que lhe restava.
E ninguém pode pretender que alguém que reinou soberano durante uma vida inteira possa, de uma hora para a outra, considerar normal que os familiares, agora donos do seu horizonte, se deem ao trabalho de organizar uma agenda de cuidadores, para que o vozinho não fique só e se exponha a riscos desnecessários.
No fim do ano passado, quando a família me pediu que fosse vê-lo em casa, porque estava muito fraco e encatarrado, relembrei as ótimas confidências que trocamos há uns 15 anos, por ocasião de uma lobectomia que lhe removeu um tumor do pulmão direito. Daquela época, eu guardava a imagem de um homem enérgico, com uma voz poderosa e um sofisticado senso de humor.
Exceto o sorriso que quase lhe fechava os olhos, todo o resto estava irreconhecível. Falando baixo, com suspiros intercalados com uma tosse seca, era um arremedo do meu velho amigo, agora numa luxuosa prisão domiciliar. Contou-me dos cuidados excessivos da família e do quanto lhe chateava que a cada hora alguém abrisse a porta para perguntar como estava e, se precisava repor a água do chimarrão. Quando argumentei que eles estavam apenas preocupados que nada lhe faltasse, ele foi definitivo:
Exceto o sorriso que quase lhe fechava os olhos, todo o resto estava irreconhecível. Falando baixo, com suspiros intercalados com uma tosse seca, era um arremedo do meu velho amigo, agora numa luxuosa prisão domiciliar. Contou-me dos cuidados excessivos da família e do quanto lhe chateava que a cada hora alguém abrisse a porta para perguntar como estava e, se precisava repor a água do chimarrão. Quando argumentei que eles estavam apenas preocupados que nada lhe faltasse, ele foi definitivo:
- E custava que, em algum momento, um deles se dispusesse a tomar, ao menos, um mate comigo?
Percebendo o quanto dói para um gaúcho a solidão de não ter para quem passar a cuia, pedi-lhe que me alcançasse o mate. E então, descobri o tamanho da gratidão que ele podia colocar num único sorriso triste.
JJ CAMARGO
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