05 DE MARÇO DE 2019
CARLOS GERBASE
A LIÇÃO DE CORDÉLIA
No começo da peça de Shakespeare, o velho e cansado rei Lear chama suas três filhas e lhes pergunta: "Quanto vocês me amam?". As duas mais velhas, Goneril e Regan, já casadas, juram que o amam com todas as suas forças, acima de tudo, acima de todos os homens, acima de suas próprias vidas, acima do que é possível medir etc.
A mais nova, Cordélia, solteira, diz que o ama como uma filha deve amar a um pai, mas que reserva uma parte de seu amor para seu futuro marido. Lear, num rompante de ódio, deserda Cordélia e a expulsa do reino, que é dividido e entregue para as duas filhas puxasacos. O que acontece depois? Leia a peça. Vale a pena.
O ministro da Educação, em mensagem para as escolas de todo o país, falou em "valorização dos símbolos nacionais" e sugeriu que as escolas executassem o Hino Nacional para os alunos. Mais: solicitou que trechos da atividade fossem gravados em vídeo e enviados para o ministério. A mensagem terminava com a expressão "Brasil acima de tudo.
Deus acima de todos!". Felizmente para o ministro, ao contrário de Lear, ele foi forçado a voltar atrás. A pergunta é: aprendeu a lição? Tenho certeza que não. Deve continuar achando que cantar o hino e demonstrar explicitamente um suposto amor à pátria é muito importante nas escolas brasileiras.
Durante um ano, em serviço militar obrigatório, cantei dezenas de vezes o Hino Nacional, o Hino da Bandeira, o Hino do Exército e outros de que não lembro nem a letra nem a música. Não adiantou nada. Permaneço amando a humanidade acima de tudo, independentemente de onde ela está. Meus concidadãos, mais próximos de mim, são tão amados quanto os estrangeiros, mais longínquos. O fato de serem brasileiros não os torna especiais.
O Brasil não está acima de tudo, nem o deus do ministro - que não sei qual é - está acima de todos. As demonstrações de patriotismo planejadas pelo ministro seriam tão falsas quanto as melífluas palavras de Goneril e Regan. Quando Lear, à beira da loucura, precisou de ajuda, adivinha o que aconteceu? Quem surgiu, vinda de longe, para - na ação, e não no discurso - estender a mão ao rei? Quem, ao ver os ultrajes à pátria amada, lutou sem temor? O Brasil precisa de mais Cordélias e de menos puxa-sacos.
CARLOS GERBASE
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