04 DE MARÇO DE 2019
KELLY MATOS
As passadas de Gisele
Enquanto boa parte da população gaúcha empurrava as malas para dentro do carro distante poucas horas do feriado mais aguardado do Brasil, eu também tentava ajeitar as coisas. Saí de casa às 7h35min daquela sexta-feira ensolarada. Entrei no carro. Cabelos molhados e nenhuma nuvem no céu. Na minha cabeça, porém, só elas. Nuvens. Escuras e cada vez mais carregadas. Ao chegar no destino, empurrei a porta de vidro com a mão direita, mas a razão que me levava até ali fez com que ela não se abrisse: ansiedade. Faltavam alguns minutos para as 8h. O consultório ainda não estava aberto.
Respira. Já, já, a moça vem abrir.
Como escrevi certa vez, é difícil explicar para a maioria das pessoas como alguém que tem 31 anos, um emprego bacana e uma família feliz sofre com transtornos de pânico e de ansiedade. A maioria delas, imagino provida de boa intenção, diz que você é bonita, jovem e bem-sucedida, portanto não tem motivos para lamentar insucessos, momentâneos ou perenes. De fato, acho que a genética me presenteou com traços da beleza de meus pais, sou jovem (embora não aguente mais do que 10 minutos em pé) e trabalho com aquilo que sonhei desde criança, o que me faz ser uma profissional feliz e realizada.
As premissas, no entanto, não se materializam em ausência de insegurança, tampouco repelem uma dor quase crônica acompanhada da sensação de estar sempre aquém de um ideal irrealizável de perfeição. Basicamente, a gente tem medo de não dar conta e passa a ter medo de ter medo. Quando menos esperamos, já era: afundamos com o Titanic e aquele som de violinos pós-iceberg.
Digo nós porque sei que não estou sozinha nessa. A übermodel Gisele Bündchen, dona de uma beleza ímpar, bem-sucedida e que, você sabe, ocupou a lista das tops mais bem pagas do globo terrestre, contou recentemente em seu livro Aprendizados sobre os ataques de ansiedade e até mesmo pensamentos suicidas por ela vividos.
- As coisas podem parecer perfeitas do lado de fora, mas você não faz a menor ideia do que está acontecendo.
Vizinho de Gisele, meu amigo David Coimbra, titular deste espaço, aliás, me diria na noite daquele mesmo dia do consultório com a porta fechada (depois de eu lhe contar que vou precisar retornar às consultas com o psiquiatra) que é necessário dar menos importância às intempéries da vida. Da maioria das coisas com as quais perdemos o sono, sustenta o David, não nos lembraremos com o passar dos anos.
- Keep it light. Keep it light, Kellenzinha - repetia ele, entre conselhos, taças de vinho e histórias impublicáveis de coberturas de Copa do Mundo.
Não me cabe aqui duvidar da sabedoria de David Coimbra - em que pese discordarmos sobre quem foi o maior zagueiro de todos os tempos -, mas decidi pesquisar mais sobre essa tese da leveza. Naquele arrazoado, David me contou que havia ensinado esse tal "keep it light" para o Bernardo, filho dele, e tinha algo a ver com Usain Bolt. No dia seguinte, lá fui eu googlear mais essa.
O conselho, descobri, tem origem em um comercial produzido pela Gatorade para o astro jamaicano Usain Bolt. O Bolt, atleta multicampeão olímpico e chamado por alguns de "o homem mais rápido do planeta", vejam só, também era inseguro. "Era inseguro" talvez seja um exagero de minha parte. Mas, vá lá, também tinha suas inseguranças. Foi a mãe do Bolt que interveio no episódio narrado nesse filmezinho. O menino estava cheio de sombras e preocupações. Pediu para a mãe para não competir. As nuvens escuras vinham das arquibancadas, da pressão, das expectativas sobre ele.
Dona Bolt, então, sentou-se com o filho.
- Qual o problema, Usain?
E o menino começou a contar sobre a angústia de viver sem ter a certeza de uma vitória, a cada competição. Dona Bolt quis saber desde quando o filho havia se tornado tão sério. O menino que eu conheço, disse ela, não tem preocupações.
Foi ali que mamãe-Bolt apresentou um raciocínio singelo e eficaz. Especialmente, vejamos, em se tratando de um personagem velocista. Quanto mais leve Bolt estivesse, dizia ela, mais rápido conseguiria se movimentar. Por isso, pediu que ele se concentrasse menos em preocupações, assim ficaria mais leve e conseguiria ir mais longe. Física e amor de mãe. Deu certo. O menino venceu dezenas de provas disputadas, quebrou recordes mundiais e pendurou nove ouros olímpicos no pescoço (um deles precisou devolver, é verdade, há dois anos, por conta do dopping de um companheiro de equipe). Não se abalou. Continuou sorrindo.
- Você sempre conseguirá ir mais rápido se estiver mais leve. Keep it light - lembrou mamãe-Bolt.
Amor de mãe, física pura ou conselhos de David. O que importa é que a gente mesmo encontre nossa forma de cruzar a linha de chegada (ok, às vezes, sabemos, terá de ser com Rivotril, mas cuidado com o dopping). Sejam passadas rápidas como as do Bolt ou suavemente delineadas como as de Gisele, ao som de Garota de Ipanema. E que sejam leves.
KELLY MATOS
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