02 DE MARÇO DE 2019
ARTIGO
O país do DEPOIS
REFLEXÕES PROVOCADAS PELA SUCESSÃO DE TRAGÉDIAS NÃO NATURAIS NO BRASIL
Pela memória do jornalista Ricardo Boechat, morto em 11/2/2019
Tragédia natural: diz-se do evento que causa grandes danos (humanos, patrimoniais, ambientais) e cuja origem está ligada a fenômenos naturais. Terremotos, tsunamis, furacões ou tempestades se encaixam nesta descrição. Brumadinho, não. O evento não decorreu de nenhum desfeito da natureza à população e aos trabalhadores da mineradora: a barragem não era natural; os dejetos, embora minerais, também não o eram, pois lá não foram depositados naturalmente. E o rompimento sabidamente não se deu por terremoto, o que poderia ser o único motivo pelo qual o acidente pudesse, talvez, ser considerado natural.
Fato é que o país está acostumado a sediar - e, posteriormente, acompanhar suas coberturas midiáticas - catástrofes não naturais de grandes proporções. Estas, por definição, decorrem de ações ou inações do próprio ser humano.
Negligência, incompetência, imperícia, desonestidade e ganância são algumas das nuances vergonhosas de nossa condição humana que as causam. Temos então a primeira conclusão: catástrofes não naturais são catástrofes evitáveis - o que não quer dizer facilmente evitáveis.
Mas por que será que aqui ocorrem em tão grande número? O meu palpite mais forte: somos o país do depois. As pessoas, os governos, as empresas e a mídia só resolvem tomar atitudes depois que a merda aconteceu. Depois de Mariana, foram semanas e meses de "medidas urgentes" mirando outras barragens (as aspas são para, de fato, dar-lhes tom pejorativo, já que sempre tomadas a posteriori). Após terem sobrado do Museu Nacional apenas as paredes externas, choveram críticas sobre o descaso dos governos com o patrimônio histórico e cultural brasileiro. Precisou um prédio abandonado do centro de São Paulo, invadido e habitado por pessoas vulneráveis, pegar fogo, desabar por inteiro e deixar sete vítimas para que sociedade e a prefeitura acordassem para os possíveis riscos de tais invasões e habitações irregulares. E, sabemos, foi apenas depois da Kiss que assistimos a prefeituras e corpos de bombeiros cassando (quase indiscriminadamente) alvarás de bares e casas noturnas.
Coloquemos mais o dedo na ferida de nossa memória coletiva ao relembrar o Bateau Mouche. No último Réveillon, completaram-se 30 anos daquela trágica noite em que 55 morreram após o naufrágio de um barco cujo destino não poderia ser outro senão o fundo da Baía de Guanabara. O excelente documentário Arquivo N - Os 30 Anos do Naufrágio do Bateau Mouche explica muito bem a sucessão de ações e omissões humanas. Certamente houve medidas práticas, implementadas nos dias e semanas que se seguiram, com o intuito de que casos similares não se repetissem. Depois, como em Brumadinho.
Ser o país do depois não é uma conclusão, mas uma constatação. A lição que dela decorre é bastante óbvia, embora pareça que uma quantidade incrível de agentes da sociedade (os mesmos citados anteriormente) a desconheça ou a esqueça frequentemente. Se somos o país do depois é porque somos o país da negligência, da falta de atitudes preventivas. Soa ridiculamente óbvio? Vamos explorar um pouco mais o assunto para ver se o é tanto assim?
O aprendizado de bebês e crianças se dá principalmente através da tentativa e erro. Se por acaso um pai nunca ensinar a uma criança que fogo machuca, ela vai acabar aprendendo isso, mais cedo ou mais tarde. Na pele, literalmente. O approach brasileiro no gerenciamento de riscos costuma ser assim, infantil: só tomamos providências após já termos errado. Tínhamos, entretanto, plena capacidade para facilmente concluir, a priori do erro, que tomar providências era imperativo. Afinal, estamos no século 21: o conhecimento e tecnologias são vastos e disponíveis. Ou seja, não precisaríamos aprender errando.
Assim, depois do caso Kiss, buscou-se melhorar a segurança de casas noturnas, afinal são de fato estabelecimentos de muito risco (alta densidade de pessoas, som alto, luminosidade baixa, peculiaridade dos espaços físicos...). Mas e hospitais, também não têm especificidades que o tornam estruturas sensíveis? Ali temos produtos químicos inflamáveis, pessoas com extrema dificuldade de locomoção, edificações grandes, labirínticas e desconhecidas para boa parte dos indivíduos que lá dentro estão. Não é difícil de se imaginar o risco de perdas humanas que um incêndio de grandes proporções poderia gerar - sem falar nos danos potenciais de segunda ordem à comunidade, com o fechamento posterior, mesmo que temporário, da instituição.
E será que nossos estádios e pontes têm recebido a devida atenção preventiva? Ou precisaremos uma tragédia para entendermos que a força da gravidade existe e pode ser bastante impiedosa com quem a desafia? Brumadinho não teria ocorrido não fosse ela.
A cidade de São Paulo por exemplo, recentemente precisou ver um vão de um viaduto na Marginal Pinheiros ceder para se dar conta de que algumas de suas pontes e alguns de viadutos representam sério risco à vida de seus usuários. Pergunto-me se as outras prefeituras das grandes cidades do país e os órgãos estaduais e federais se mexeram ou apenas pensaram que "é um problema de São Paulo".
A limitação de visão do brasileiro é realmente impressionante! O acidente no CT do Flamengo gerou questionamentos sobre como estão as condições nos outros alojamentos na cidade do Rio (quiçá no Brasil), bem como a utilização de espuma de poliuretano em divisórias internas de contêineres de aluguel. Tais questionamentos precisam ser feitos? Claro. Mas ar-condicionado escolhe apenas alojamento de categorias de base de times de futebol do Rio de Janeiro para gerar curtos-circuitos e explodir? Arquitetos, engenheiros ou designers de interiores escolhem apenas contêineres de aluguel para prescrever divisórias com espuma de poliuretano?
Será que é tão, mas tão difícil fazer os diversos agentes da sociedade entenderem que risco se estima pela multiplicação da (1) probabilidade estimada de um evento ocorrer pelo (2) dano potencial - humano, material ou natural - que este evento poderá gerar? É uma definição/equação simplíssima, com duas variáveis. Porém extremamente poderosa.
Há muitos contextos em que incêndios podem gerar danos potenciais enormes. Assim, se se pretende de fato agir preventivamente daqui para adiante, assistir autoridades focando-se apenas em alojamentos de times de futebol de uma cidade - porque recém tivemos um evento em contexto similar - é gozar da capacidade crítica que um cérebro humano nos possibilita.
Moral da história: ser o país do depois significa, obrigatoriamente, não ser o país do antes. E não ser o país do antes significa que a nossa sociedade não dá bola para riscos relevantes os quais ela nunca vivenciou: somos incapazes de utilizar nossos cérebros para identificarmos a priori riscos potenciais controláveis e agirmos proativamente sobre eles.
O PAÍS DO ESQUECIMENTO
Mas o Brasil não é só o país do depois. É também o país do esquecimento - e aqui serei tão curto quanto é a memória da nossa sociedade. Passados os dias ou semanas de comoção nacional, a poeira baixa. As providências são tomadas enxergando apenas o que está em um passado próximo. Quando o fio do tempo vai passando por nós e aquela catástrofe maior já está lá longe, esquecemos. E, por conclusão lógica, se os agentes assim esquecem o que se passou, esquecidas também são as famosas "medidas" tomadas no pós-evento.
Interessante que esta falta de memória inclusive invalida a característica infantil (tentativa e erro) de nosso approach para gerenciamento de riscos. Afinal, a criança que se queima com fogo porque nunca a alertaram provavelmente nunca esquecerá, por toda sua vida, que fogo queima. Na Kiss, a fumaça e o fogo mataram 242. Será que as providências tomadas à época ainda estão sendo praticadas, fiscalizadas, melhoradas? Ou os agentes que de alguma forma têm responsabilidade sobre a segurança de casas noturnas (empresários, arquitetos, trabalhadores, frequentadores, órgãos fiscalizadores) esqueceram que fogo e fumaça em danceteria matam (e muito)?
THOMAS KEISERMAN
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