02 DE SETEMBRO DE 2017
J.J. CAMARGO
A DÚVIDA É MELHOR do QUE a CERTEZA RUIM
A vida bem que podia, às vezes, dar uma trégua. Não precisava ser sempre tão real
Os psiquiatras consideram normal que as crianças curtam um amigo imaginário. Isso ocorre com frequência maior do que se imagina e aparentemente não depende do quanto elas possam se sentir sozinhas. Seria apenas uma fantasia inofensiva que oferece graciosamente um confidente, disponível como poucos e confiável como nenhum outro.
Curiosamente, já encontrei pacientes bem velhinhos, olhados com desconfiança pelos mais generosos e tidos como dementes pelos mais cruéis, simplesmente porque foram flagrados em animadas conversas consigo mesmos. Mas não seria apenas a complementação do ciclo vital se repetindo nos extremos da vida? Passei a pensar nisso depois que o professor Tarantino, com seus quase 99 anos de lucidez absoluta, me confidenciou: "Muitas vezes na vida senti a presença do meu avô. E depois que envelheci, ele nunca mais largou da minha mão!".
Claro que esse tipo de relato só será bem dimensionado por quem tenha tido um avô interessante, o que infelizmente não é o mais comum. E nem recomendo argumentar com quem, sem poder escolher, nasceu numa família em que o avô era só o desinteressante mais antigo.
A Gláucia, com mais de 80 anos, tagarelava o tempo todo com ou sem companhia, e a família fazia de conta que não percebia que ela improvisava uma cantoria quando era surpreendida conversando sozinha. Na verdade, era uma avó afofada pelos 11 netos que, cuidando dela, revezaram-se em desvelo e agonia, sempre cobrando dos médicos a estimativa de uma data em que ela poderia voltar para casa. Quando ficou comprovado que a dor em faixa no abdome superior era um câncer avançado de pâncreas, ela soube disso pelos olhos incandescentes dos netos, ao redor da cama.
As fases da revolta e da depressão foram prolongadas, e ela só passou para a etapa da barganha quando soube que uma neta que vivia nos EUA, e que recentemente dera à luz uma menina, estava vindo visitá-la. Nessa tarde, fez quimioterapia sem nenhum paraefeito. À noite, não aceitou ser levada para a UTI, mesmo diante da argumentação de que seriam apenas poucas horas, necessárias para a reversão de uma arritmia cardíaca inesperada. E argumentou que ninguém merecia atravessar o mundo para encontrar sua avó entre máquinas. Na manhã seguinte, mesmo com uma palidez acentuada, estava irreconhecível: tinha dispensado a camisola do hospital e, vestida com elegância, penteava delicadamente os cabelos remanescentes do tratamento.
Confessou-me, com voz fraca, que sabia que estava morrendo, mas queria que lhe prometesse fazer o impossível para que vivesse até o fim da semana: ela precisava conhecer a sua única bisneta, antes de partir. Sem ter mais o que prometer, prometi.
Contra todas as probabilidades, agarramo-nos à esperança, o mais frágil dos nossos delicados fios de sustentação. Uma pena que a morte, pouco afeita a acordos, tenha ignorado as promessas. O coração, displicente, parou na madrugada do sábado em que a bisneta chegaria.
A vida bem que podia esporadicamente dar uma trégua. Não precisava ser sempre tão real.
J.J. CAMARGO
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