sábado, 19 de novembro de 2016



19 de novembro de 2016 | N° 18692 
ANTONIO PRATA

TONY SOPRANO ESTÁ NO PODER

Tony Soprano, Walter White e Don Draper são homens, brancos, de meia-idade, moradores dos subúrbios e com renda anual acima dos US$ 100 mil (em valores corrigidos). Se não fossem personagens de TV e vivessem hoje seriam, demograficamente, eleitores do Trump. (Entre os homens, o Aprendiz ganhou de 53% a 41%. Entre os brancos, 58% a 37%. Entre 45 e 64 anos, 53% a 44%. Entre moradores dos subúrbios, 50% a 45%. Entre os que recebem mais de US$ 100 mil, 48% a 47%).

Nas últimas semanas, cansamos de ler, sobre o resultado das eleições nos EUA, explicações como: os homens se sentem impotentes, o trabalhador comum se considera desprestigiado, a classe média foi esquecida, há muito ódio represado no interior da América. Ora, quem assistiu a Sopranos ou a Breaking bad já sabia disso tudo. É sobre os sentimentos acima que as séries tratam. Já Mad men é um negativo das duas: mostra um suposto passado glorioso em que todos eram ricos, malvados e felizes. Don, Tony e Walter são anti-heróis que tentam se libertar de seus mal-estares na civilização através de atitudes deploráveis. 

Durante a Guerra Fria, o herói era um cidadão pacato que, secretamente, salvava o mundo. No século 21, época de extremo individualismo, competição e autorrepressão, o herói é um cidadão pacato que, secretamente (ou nem tanto), manda todas as amarras da decência às favas e afunda no crime (ou no uísque, no sexo e no cigarro, às onze da manhã).

Havia um gozo libertador em assistir a Tony Soprano e seus comparsas resolverem pequenas desavenças com tacos de baseball e balas de revólver. Em acompanhar o quase eunuco professor Walter erigir seu império da metanfetamina. Em ver Don Draper e seus colegas deslizarem com sapatos lustrosos por um mundo em que o politicamente correto mal engatinhava: mandava quem podia, obedecia quem tinha juízo. (Na série, claro, ficamos amigos dos que mandavam.)

Os roteiristas daqueles programas sabiam do prazer que estavam nos dando e trabalhavam as menores contravenções com requintes de crueldade. No piloto de Mad men, Sally, a filha do Don, vem correndo com uma sacola de plástico na cabeça. Betsie, mãe da menina, dá o grito que todos os pais contemporâneos dariam, com medo, supomos, de que a filha sufocasse. Betsie, então, loira, linda e com um cigarro na mão, passa o pito: “Esse é o plástico do meu vestido! 

Devolve já pra cama!”. Vejo esta cena no fim de um dia infinito, exausto depois de trabalhar, correr, botar os filhos na cama, tentar comer uma refeição saudável, terminar comendo um xis salada, a conta no vermelho, quatro quilos acima do peso, culpado por ser terça e eu já estar na segunda cerveja e penso: ah, como o mundo era lindo quando era horroroso! Que delícia ser um monstro! Matar, roubar, comer, beber, fumar, “grab them by the pussy”.

Mal sabíamos que Don, Tony e Walter eram São Joões Batistas, que o verdadeiro anti-herói americano, o que nos batizaria não com a água benta da ficção, mas com fogo, estava correndo por fora, noutro canal, em seus tempos de aprendiz. Pois em novembro de 2016 o cidadão pacato, secretamente, mandou todas as amarras da decência às favas e elegeu Trump. Tony Soprano está no poder.

Aos que, até no Brasil, comemoram a vitória dos bagos sobre os neurônios, é bom lembrar que Sopranos, Mad men e Breaking bad não acabam, exatamente, num happy end.

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