04 DE MAIO DE 2019
ANA CARDOSO
Ninguém acredita na Cassandra
Cassandra é um personagem da mitologia grega, irmã da Helena de Troia. Ela não quis fazer sexo com Apolo, deus da juventude e da luz, e ele a amaldiçoou. Seu infortúnio seria falar sempre a verdade, fazer profecias corretas, mas não ser ouvida e ninguém acreditar nela. Sua beleza, sensibilidade e dons de nada lhe serviram numa sociedade onde foi desacreditada. Se ouvida, ela poderia ter salvado seu povo.
Louca, mentirosa, malévola, conspiratória e manipuladora. Assim a família a definia. Lá pelas tantas, foi roubada e doada a Agamenon, que a trancafiou e estuprou diversas vezes até morrer. Que mulher nunca foi acusada de estar querendo tirar vantagem de alguém quando faz uma acusação de assédio ou estupro? Quem nunca foi Cassandra?
Muitas vezes converso com amigas sobre traumas de infância. No começo me surpreendia com as histórias: uma em cada três mulheres foi abusada ou molestada na infância. Se não é o seu caso e isso lhe soa estranho, comece a conversar com as pessoas. Aviso de gatilho: essas conversas podem alterar drasticamente a forma como você vê o mundo.
Historicamente os abusadores (e eles são muitos, infelizmente) se valem de duas armas: o segredo e o silêncio. Fazem o que querem ou conseguem e instruem suas vítimas a se calarem. Tenho amigas que levaram 30 anos para falar sobre o assunto. Outras esperaram o agressor morrer para abrir a boca. Uma delas disse que mesmo que o tio abusador esteja morto, não tem coragem de falar sobre o assunto com a família para não chocar a tia e as primas. Outras ainda convivem com o abusador.
Conversar é importante porque existe uma chance bem grande de outras mulheres (e meninos também) terem sido abusados. E continuarem sendo. Uma grande amiga contou que, quando se deu conta e decidiu abrir o assunto na família, descobriu que o avô infeliz (que o diabo o carregue) havia abusado de suas irmãs, primas, mãe e tias. De todas elas.
Quando o silêncio é quebrado pelas vítimas, a reação imediata é desqualificar quem está fazendo a denúncia. Dizer que a pessoa, muitas vezes criança, é louca, mentirosa, está inventando, tem outros interesses. Exatamente como faziam com Cassandra em Troia. Até quando, hein?
ANA CARDOSO
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