quinta-feira, 27 de dezembro de 2018




27 DE DEZEMBRO DE 2018
L.F. VERISSIMO

Cíceros

Cícero era o cara. Orador brilhante, político atuante, filósofo, poeta, republicano exemplar... Foi o intelectual que dominou duas eras de transição, a do ocaso do mundo pré-cristão e a da passagem do grego para o latim como língua civilizatória. Li em algum lugar que, se não fossem as traduções que Cícero fez do grego para a língua de Roma, a história do mundo teria sido outra. Uma especulação "un po exaggerata", diriam em Roma.

Shakespeare botou Cícero na sua peça Júlio César, mas como um coadjuvante que pouco aparece, embora seja muito citado. Os conspiradores que se preparam pra assassinar César e frear sua ambição autocrática discutem se Cícero deve ser convidado para o golpe. Afinal, nenhum romano era mais republicano do que ele. Mas a razão para convocá-lo não seria sua oratória inflamadora ou sua predisposição para derrubar possíveis tiranos.

"Vamos chamá-lo porque seus cabelos prateados nos comprarão boas opiniões e vozes que elogiarão nossos feitos", diz um dos conspiradores. "Dirão que o julgamento dele guiou nossas mãos e que nossa juventude e loucura não aparecerão, pois estarão enterradas na sua gravidade." Cabelos prateados e gravidade é o que Cícero, que está vivendo seu próprio ocaso, tem para oferecer aos conspiradores, que não o convidam para ajudar a matar César. Mas, mesmo não participando do golpe, Cícero não escapa da terrível vingança de Antônio, que pede para lhe trazerem a cabeça e as mãos do poeta decepadas.

Cícero foi um exemplo do perigo de incorporar virtudes cívicas quando todos à sua volta só querem é poder, e a emprestar seu prestígio - ou seus cabelos brancos - a causas incertas. A redescoberta da era clássica pela Renascença resgatou Cícero da obscuridade, mas é outro Cícero que aparece agora, o inspirador da República das Letras, que surgirá para compensar os horrores de um mundo em ebulição e defender um humanismo transnacional. Infelizmente, um ideal que depende da política como uma atividade de cavalheiros, governos de uns poucos iluminados e todas as práticas antidemocráticas que você pode imaginar. Esse Cícero não nos serve.

L.F. VERISSIMO

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