08 DE DEZEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA
O livro dos meninos sem liberdade
Às vezes, as pessoas me pedem para escrever apresentações de livros. Fico envaidecido. Afinal, trata-se de uma distinção. Mas, em geral, recuso, porque essa não é uma tarefa simples, é preciso levá-la a sério: você tem de ler o livro, refletir a respeito e fazer um texto digno do que lá encontrou. Ocorre que não tenho tempo para fazer tudo isso - não consigo nem responder aos e-mails que me enviam todos os dias?
Semanas atrás, porém, fiz questão de aceitar um desses convites. Foi para escrever a apresentação de um pequeno livro intitulado Vozes, Pincéis e Dobras, escrito pelos meninos que estão internados na Fase de Porto Alegre. Tenho cá esse livro, que me foi enviado pelo Correio.
Gostaria de repartir um pouco do que li com você. São textos simples, é óbvio - estamos falando de meninos que, tecnicamente, estão presos por crimes que cometeram, e não raro por crimes graves.
Alguns escreveram poemas, outros preferiram a prosa, mas em várias dessas crônicas breves você percebe que eles se esforçaram para fazer com que as frases rimassem. Quase todos se referem à angústia de estar, na sua linguagem, "privados". No caso, de liberdade.
Um dos meninos, LFFC, escreve para a namorada, que está do lado de fora:
"A minha meta era roubar e matar. Hoje, atrás das grades, a minha meta é te encontrar. Só te dei valor quando me privei, agora meu caminho é você e uma filha".
Outro, JVRR, tece uma poesia que lembra do tempo em que pedia dinheiro aos motoristas, debaixo dos semáforos:
"Eu tenho apenas 9 anos
Já faz tanto tempo
Que não vejo meus manos.
Neste semáforo frio eu já passei
Fiquei doente sem ninguém
Será que sou importante para alguém,
Se nem minha mãe conheci?".
Um, que se identificou como Bruno, contou que seu sonho era ser jogador de futebol. Certo dia, um olheiro do Inter o viu jogar e convidou-o para fazer testes no clube. Bruno foi, jogou e acabou sendo aprovado. Tinha 16 anos, atuava de centroavante e arrasava nos treinos. Mas?
"Um dia, os guris de onde eu morava começaram a me chamar para ir aos bailes funk e eu, sem pensar, comecei a ir e a me envolver. Comecei a faltar a todos os treinos, e o meu sonho cada vez mais ia para o buraco. Um dia, um desses amigos foi de manhã cedo até minha casa me chamar e falou:
- E aí, Bruno, vamos roubar uma pessoa?
- Bah, não sei? Quando vê, eu caio preso.
- Capaz! É rapidinho!
- Tá.
E roubamos. Quando estávamos voltando para casa, dois policiais de moto nos avistaram, perceberam que fomos nós que roubamos e começaram a nos perseguir. Foi aí que tentei fazer uma fuga para um lado e meu amigo para outro, mas eles vieram atrás de mim e me pegaram."
Todos, absolutamente todos, querem sair da reclusão e do crime, voltar para a família ou para alguma mulher amada, como RJMA, que confessa:
"Matei, roubei sem dá boi pra ninguém, mandei muita gente pro ALÉM. Mas agora eu já sei que isso não leva a nada, quero voltar pra rua, quero voltar pra minha quebrada, vou ficar longe de tudo que é ruim".
Espero que consiga.
Já fui várias vezes à Fase, para dar palestras aos internos. Nunca encontrei um menino que viesse de família constituída, com pai e mãe que realmente cuidassem dele. Na maioria dos casos, o pai havia sumido, ou ele não o conhecia, ou era um bêbado ou um drogado que abusava dos filhos. A referência para os garotos sempre é a mãe. Por isso, um dos textos, de IVN, me tocou em especial. O título é singelo: Obrigado, Mãe, por Você Existir. É como se fosse uma carta, em que ele diz num fluxo de sentimentos:
"Queria tanto te falar, mas, mãe, eu não consigo. Quando eu crio coragem, o medo acaba comigo. Mas não é o medo bobo. É o medo de te magoar. Penso em todos os teus conselhos, que eu não quis escutar? Eu quis pagar para ver, e vi o mundo ensinar. Virava as madrugadas, só ganhando e gastando, a mesa cheia de drinques e a fumaça exalando. ?Dero? um bote no QG, levaram eu e dois manos. Agora estou privado, condenado a alguns anos e cadê meus parceiros, que diziam estar comigo? Nos dias de visita, é a coroa que salva. Obrigado, mãe, por você existir".
Como já disse, é só um livrinho. Tem a espessura de um celular, mal chega a 80 páginas. Mas muitas das razões pelas quais hoje sofre o país você encontra ali. Porque ali estão expostas a dor, a tragédia e também a esperança dos meninos do Brasil.
DAVID COIMBRA
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