sexta-feira, 21 de dezembro de 2018


21 DE DEZEMBRO DE 2018
EDUARDO BUENO

Milagre de Natal


O comunismo estragou o Natal. Pelo menos o meu, em 1974. Eu tinha 16 anos e havia acabado de ler A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Friedrich Engels. Mas calma: não fui forçado a fazê-lo por um professor mal-intencionado. Estávamos nos anos 1970, e a gente só entrava em fila, "cobria", cantava "Eu te amo, meu Brasil" e aprendia sobre o milagre brasileiro, a Transamazônica e as 200 milhas nas aulas de Moral e Cívica, sem doutrinação alguma, nos bons tempos da escola sem partido. Assim, li o tal livro por livre e espontânea vontade. 

E, na noite de Natal, concluí que estava pronto para discutir sobre esquerda e direita (e cristianismo e hipocrisia) com meu pai. E ele, normalmente um sujeito brando, respondeu-me com... um tapa na cara. E não foi de luva. Achei um tanto deselegante da parte dele. Dando a discussão por encerrada, saí porta afora.

Caminhei sob o bafo úmido da noite rumo à casa de minha namorada - que também tinha 16, mas lia Strindberg, gostava da pintura de Kokoschka e traduzia Bob Dylan de ouvido. Ao chegar à casa dela, vendo pela janela a festa tipicamente alemã, com abastança e requinte, e o segurança do lado de fora comendo num pratinho de papel, dei meia-volta sem bater na campainha. Então, à margem de uma avenida voraz, um carro bateu na traseira de outro. Os motoristas desceram, grunhindo feito insetos hostis. Um deles retornou para o carro, pegou uma faca de prata (embrulhada para presente) e meteu-a na barriga do oponente. O corpo ficou estendido no chão. Desisti de vez do Natal.

Por anos a fio.

Só em 1987 minha mãe descobriu que minhas filhas (então com sete e quatro anos) jamais tinham ouvido falar no bom velhinho, nem comido peru (até porque éramos vegetarianos) e muito menos cantado Noite Feliz. A mãe delas e eu costumávamos fugir para uma praia selvagem (no tempo em que elas existiam) e passávamos o Natal e o Ano-Novo em meio à mata, sob os murmúrios de uma cachoeira (e o zumbido dos pernilongos), saudando o solstício de verão num rito ancestral. E com a certeza de que estava tudo errado com o Natal.

Então, houve o milagre. A avó arrastou as netas para a casa dela, vestiu-as com babados e organdis e as colocou frente às luzes faiscantes de uma árvore enorme (cujos enfeites tinham sido de minha avó, dentre eles uma bola de Natal que era o Zeppelin). Aí, apresentou-as ao Menino Jesus no presépio de porcelana e, com o porteiro como Papai Noel (pouco importava se ele era negro e esquálido: um travesseiro na barriga e a basta barba falsa resolveram a questão), as cobriu de presentes. A tradição foi resgatada. O ritual restou salvo. Acho que, caso fossem convidados, até Marx e Engels botariam as barbas de molho e curtiriam a festa da minha mãe.

Mas, como ela não está mais aqui, fica a dica: neste Natal, evite discussões filosóficas. Reserve-as para o Réveillon de 2018 para 1964, que vem vindo aí.

EDUARDO BUENO

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