sexta-feira, 14 de dezembro de 2018



13 DE DEZEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

Seja um corno feliz

Você quer fazer do mundo um lugar melhor para se viver?

É fácil: seja um corno feliz. O governo deveria lançar essa campanha. Digo mais: urge que o governo a lance, porque não dá mais para aguentar tanto corno burro por aí.

Na verdade, esses cornos burros não são cornos burros; são apenas burros, porque corno não existe. Estou falando sério. A cornice é tão somente um estado de espírito. Uma abstração. Uma invenção do mundo civilizado. Tempos atrás, quando éramos todos alegres nômades, não havia cornos. Homens partilhavam mulheres, mulheres partilhavam homens, ninguém era de ninguém. Os filhos eram criados pelo bando, que se deslocava em busca de caça, coleta e água.

O corno surgiu há pouco tempo. O gênero humano existe há pelo menos 3 milhões de anos. A nossa espécie, o Homo sapiens, há cerca de 300 mil anos. Já o corno é novinho, tem 12 mil anos, época em que foi inventada a agricultura. É que, com a agricultura, os homens precisavam de terra. Como precisassem de terra, tiveram de estabelecer propriedades. No momento em que os homens se tornaram proprietários, eles passaram a sentir necessidades que antes não sentiam, duas em especial: queriam garantir a continuidade da posse e queriam aumentá-la.

Para continuar com a propriedade, e talvez aumentar a sua extensão, o homem tinha de contar com a lealdade dos filhos. Afinal, os filhos é que ajudariam a trabalhar a terra e a protegê-la de invasores. Mas como garantir a lealdade dos filhos se eles fossem de outro homem?

Você sabe desde sempre que um filho é de determinada mãe. Não há possibilidade de dúvida: a criança sai DE DENTRO da mulher. Mas, antes do exame de DNA, o que daria certeza a um homem de que o filho era dele e não daquele sumério bonitão que andava pela vizinhança?

Foi assim que nasceu o casamento e, com o casamento, a fidelidade conjugal.

A fidelidade surgiu para assegurar ao homem a legitimidade dos seus herdeiros. A mulher tinha que ter só um homem. Tinha de se sentir obrigada a isso.

Mas por que ela se sentiria obrigada a isso, se talvez fosse mais divertido repoltrear-se também com o sumério bonitão? Aí a moral entrou em ação: a mulher que tivesse mais de um homem era pecaminosa. A que tivesse apenas um era virtuosa.

Só que era preciso mais: era preciso que os homens sentissem obrigação de exigir fidelidade de suas mulheres. Porque, se por acaso houvesse homens que tolerassem a infidelidade feminina, as mulheres diriam ao aflito proprietário de terras: por que os outros deixam e você não?

Eis o glorioso nascimento do corno.

Tempos atrás, quando eu estava no Pretinho Básico, adorava fazer uma brincadeira: nós ligávamos para alguém conhecido dos ouvintes e eu dizia ao microfone, com voz grave:

- Coooooooornoooo?

A reação dos homens era engraçadíssima. Alguns simplesmente ficavam petrificados. Porque, por alguns segundos, eles consideravam que aquilo poderia ser uma informação. Ou seja: eles poderiam ser, de fato, cornos. E isso lhes parecia horrível!

É uma infantilidade. Porque, como demonstrei acima, o corno é um personagem de ficção. Por causa de uma ficção, por causa de algo que não existe, você vai sair por aí batendo nas outras pessoas ou até matando, como aconteceu quatro vezes nesta semana em Porto Alegre? Você vai desgraçar a sua vida, a da sua mulher, as dos seus filhos e de mais um punhado de pessoas no entorno por uma subjetividade?

Claro que não, você não é burro. Você sabe que a sua mulher não é "sua". E que você não é dela. Ela foi embora? Ela está com outro? Paciência. Peça para ela voltar. Rasteje. Ou fique ressentido. Bloqueie-a nas redes. Não fale mais com ela. Mas não apele para a violência. Use a cornice para o bem. Componha uma música, como fazia Lupicínio. Escreva um livro, como fez Flaubert. Ou simplesmente vá beber com os amigos. Torne o mundo mais leve: seja um corno feliz.

DAVID COIMBRA

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