quinta-feira, 6 de dezembro de 2018


06 DE DEZEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

Cocô


Existe algo que faz com que eu, você, a Gisele Bündchen, os cães, os gatos, os passarinhos e os cavalos sejamos iguais: todos fazemos cocô. Mas, depois de feito, o que fazer com ele, o cocô? Eis um problema. Eu, você e a Gisele Bündchen contamos com sistemas de esgoto, e os cães, com a diligência de seus donos. Os gatos são os mais higiênicos e independentes: basta-lhes uma caixinha de areia, que eles se viram. Os passarinhos, o cocô deles é pequeno, quase irrelevante, a não ser que você esteja passando embaixo no exato momento em que um se aliviar, o marrom despencando do azul do céu como uma bomba. Porém, ainda que isso aconteça, não se irrite: dizem que ser alvejado por cocô de passarinho dá sorte.

E o cavalo? O cavalo faz muito cocô. Você não poderá colhê-lo do chão com o saquinho de plástico que guarda no bolso, nem acondicioná-lo numa caixa de areia, nem despejá-lo em um vaso sanitário. E, se cavalos voassem, ninguém diria que é sorte ser atingido pela defecada de um deles.

Você não vê muitos cavalos por aí, por isso não pensa nesse dilema. Mas imagine se, na sua cidade, todos os dias, circulassem milhares de cavalos. Cavalos parados em frente a sua casa, dezenas deles. Cavalos troteando pelas ruas, sem parar, o dia inteiro, a noite inteira também, comendo, bebendo água (50 litros por dia!) e fazendo suas necessidades imperiosas. Antes, era assim. Foi assim durante muito tempo, nas cidades e em toda parte, porque os cavalos eram o meio de transporte.

No século 19, havia cem mil cavalos em Nova York. Vi fotos das ruas da época. Eram tomadas por monturos de bosta. Se você não calçasse botas de cano alto, não teria como atravessá-las. A prefeitura chegou a calcular que, se não surgisse alguma novidade tecnológica para resolver o problema, na década de 40 do século 20, os morros de cocô de cavalo subiriam a três metros de altura, alcançando as janelas do segundo andar dos edifícios, selando as entradas das casas.

Mas, Hosana nas alturas!, surgiu uma novidade tecnológica que salvou o mundo de ser soterrado pelo cocô: o automóvel.

O carro nos livrou da poluição, das moscas que empesteavam as cidades, do cheiro fétido que tornava uma experiência nauseabunda o simples ato de caminhar pela rua. O carro fez as cidades mais limpas, mais agradáveis e mais humanas.

O carro, quem diria?

Mas o carro, você sabe, também trouxe problemas. Naquelas priscas eras, o aparecimento chacoalhante, ruidoso, escalafobético de um calhambeque punha os cavalos e os transeuntes em pânico. Tanto que a Inglaterra instituiu a Lei da Bandeira Vermelha a fim de regular a novidade: um automóvel, para circular em Londres, deveria ser precedido de um pedestre que caminharia a 50 metros de distância, portando uma bandeira vermelha. As pessoas viam a bandeira e se afastavam para dar passagem à geringonça.

Essa foi uma das primeiras das milhares de leis que surgiram para disciplinar o uso do automóvel. Até o século 19, os legisladores se preocupavam com o esterco produzido pelos cavalos. No século 20, eles tiveram de lidar com a velocidade dos carros. E, no século 21? O século 21 vou ter que deixar para amanhã. Vou chegar, acredite, no caso envolvendo o ministro do STF e seu achacador em um voo comercial. Aguarde!

DAVID COIMBRA

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