terça-feira, 1 de novembro de 2016


01 de novembro de 2016 | N° 18675
ARTIGOS - MÁRIO CORSO*

NÓS E NOSSOS MORTOS


As mortes em escala industrial da I Guerra Mundial modificaram os rituais de luto no Ocidente. Eram tantas as perdas, que era impossível lamentar cada uma. Desde então, e não só por isso, segue a paulatina erosão do luto comunitário. Diminuindo as manifestações públicas de pesar, o trabalho de assimilação das perdas se particularizou, o que era ruído e choro externo tornou-se sofrimento solitário interno. Nossos velórios atuais e seus desdobramentos são muito econômicos em relação ao passado recente.

Esquecemos que o espaço social dos velórios, ao velho modo, permitia algo mais: embora houvesse um personagem a ser pranteado, era um momento para extravasar o sofrimento, o que era particular derivava para o coletivo. Existia um momento social para a dor. Não é difícil perceber que quando estamos em um enterro lembramos dos nossos que se foram, e a questão era justamente essa: abrir a porta do pesar. Cada funeral servia para reencontrar-nos com o cemitério particular que temos na alma. Chorávamos o defunto, os que já partiram e aproveitávamos para chorar a nossa própria finitude.

A atual epidemia de depressão não deve ser pensada deixando de fora que somos de uma época que desligou-se dos rituais que envolvem a morte, que interiorizamos o que era coletivo dificultando o luto. Fazemos pouco caso da morte, a elidimos na ilusão de que assim alcançaríamos mais fácil a felicidade.

Não por acaso, estamos nos divertindo vendo morte a cada noite na TV. Não há limites para o número nem para os requintes de maldade. Sempre há um assassino e torcemos por um policial que restabeleça a ordem. Mas o verdadeiro culpado é a falta de peso da inscrição simbólica da morte. Uma das marcas de um trauma é a repetição incessante sem que isso gaste sua força. Ela insiste em nosso imaginário justamente por lhe negarmos a deferência exigida.

Use o Dia de Finados para pensar nos mortos, por respeito a eles e por respeito a nós mesmos. Se não criarmos um momento para olhar a dor da perda nos olhos, ela nos atacará pelas costas e, não vendo o seu rosto, nem saberemos pelo que sofremos.

*Psicanalista

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