12 de novembro de 2016 | N° 18685
DAVID COIMBRA
Muito longe, muito além
Aminha madrinha Sônia tocava gaita para mim. Não harmônica; gaita de botão e teclado, que, no Nordeste, vira sanfona.
A Madrinha, assim a chamo desde pequeno, Madrinha, pois a Madrinha me levava aos filmes dos Beatles e da Rita Pavone.
Eu era apaixonado pela Rita Pavone. Ela era magra e pequena, aquela italianinha, e tinha dentes de coelho e usava cabelo curto, com uma franja redonda tapando toda a testa. Não se pode dizer que fosse um modelo de beleza, mas havia um ar selvagem nela quando cantava Datemi un martello.
Lembro de um filme em que a Rita Pavone fazia uma pistoleira do Velho Oeste americano. Os italianos são fascinados pelo Velho Oeste americano, vide os filmes imortais de Sergio Leone. Você já assistiu a Era uma vez no Oeste e O bom, o mau e o feio? Não? Então já tem programa para o fim de semana. Sinto inveja de você, que assistirá a essas obras-primas pela primeira vez.
Mas eu contava que a Madrinha tocava gaita para mim. A Madrinha sempre fez todas as minhas vontades, mas, por algum motivo, ela tocava com certa relutância quando eu pedia. Eu tinha de insistir, “toca, Madrinha, toca, toca, tocatocatoca”, até que, respirando fundo, ela pegava da gaita, passava as alças nos ombros, sentava-se no sofá da sala da casa do meu avô, nos Navegantes, e começava a tocar. Era lindo.
Não sei por que, ela, que tocava tão bem, um dia resolveu parar.
– Não toco mais – anunciou.
E vendeu a gaita. E nunca mais tocou. Sempre pergunto por que, e ela muda de assunto. Um mistério.
Havia uma música em especial que eu pedia sempre: Al di la, do filme O candelabro italiano. Gostava tanto da música, que, anos depois, já adulto, aluguei o filme e, numa noite de sábado, assisti a ele, sorvendo um tinto da Toscana.
Não recordo de muita coisa da trama, mas da cena em que Al di la é cantada, sim. O casal de mocinhos americanos está num bar da Itália. Os homens usam gravatas e cabelos bem aparados. Todos fumam nas mesas em volta. Os dois americanos, não. Eles são bem jovens, as peles frescas, os olhares ingênuos. Estão sentados lado a lado, de mãos dadas. O cantor entoa os primeiros versos e eles se entreolham, o amor escorrendo feito melaço. Ela pergunta o que significa “al di la”. Ele responde que é difícil de traduzir para o inglês e, em seguida, tenta:
– É algo que está muito, muito longe, muito, muito além deste mundo. É assim que o autor da canção ama essa mulher.
Ela suspira. Ele suspira. Eu suspirei, vendo a cena.
Al di la. Muito, muito longe, muito, muito além deste mundo.
Eu, que estou muito, muito longe do Brasil e da Itália, peguei o Bernardo na escola, dias atrás, e fomos comer uma focaccia na cantina toscana do meu amigo Andrea. Muitos italianos frequentam o lugar, e um deles, ao se despedir do Andrea, saiu cantarolando baixinho exatamente essa música. Não foi nem um cantar, foi mais um murmurar dito para si mesmo, como alguém que está num momento suave e distraído do dia, mas identifiquei com nitidez, quando ele repetiu:
– Ci sei tu... ci sei tu...Olhei para o Bernardo e disse:
– Quando eu tinha a tua idade, minha madrinha tocava essa música para mim na gaita.
– Que música? – ele quis saber, já que não havia prestado atenção ao italiano que, àquela altura, estava cantarolando na outra calçada.
Então, contei sobre aquela música e sobre aquele filme tão antigos. Ele pediu para ouvi-la. E ali mesmo, à mesa da cantina do Andrea, saudei a tecnologia e busquei a gravação no YouTube. Encontrei exatamente a cena de que me lembrava, os mocinhos americanos no bar enfumaçado, enlevados pela canção. Ele ouviu em silêncio. Depois sorriu:
– Que bonito...
Uma música feita antes de eu nascer, antes dos celulares com internet que nos permitem voltar ao passado, uma música de tanto tempo atrás, de um mundo que não existe mais, tinha o poder de encantar um menino do século 21. A força da arte. A beleza da arte. Que faz com que nada esteja muito, muito longe, nem muito, muito além.
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