16 de novembro de 2016 | N° 18689
DAVID COIMBRA
Desventuras do Professor Ruy
Vinha passando pela frente de um restaurante na Harvard Street e pechei naquela palavra brasileira. Não era nem uma palavra do português; era brasileira mesmo, recém-chegada do tupi. Estava escrita a giz, num daqueles pequenos cavaletes com quadro-negro que anunciam as promoções do dia. “Acai bowl”, oferecia. Ou: “Tigela de açaí”.
Fiquei olhando para a placa. Açaí, quatro letras, uma palavra minúscula, e ainda assim ostentava dois erros. Não por ignorância do americano que a escreveu, coitado. É que no inglês não existe acento ou cedilha. Acento, só em duas ou três palavras arrancadas do francês, mas o cedilha, com sua cauda rebelde, esse é uma impossibilidade.
Lembrei do Professor Ruy Carlos Ostermann. Na Copa de 2006, passamos três semanas em Weggis, na Suíça, uma cidadezinha belíssima ao pé dos Alpes, às margens do Lago Lucerna. Mark Twain, que gostava de passar as férias lá, dizia que aquele era o lugar mais lindo do mundo. Não conheço todos os lugares do mundo, mas tenho certeza de que, no mínimo, Weggis é um dos mais bonitos.
Como a Seleção Brasileira fez a pré-temporada lá, a cidade encheu-se de brasileiros, que espalharam pelas ruas antes calmas todos os predicados e defeitos peculiares de nossa civilização erguida abaixo da Linha do Equador. Entre os predicados, a alegria expansiva; entre os defeitos, a desonestidade de uns e outros. Foi um desses que acabou roubando diversos equipamentos dos jornalistas, entre os quais um dos nossos laptops.
Decidi registrar queixa. A delegacia ficava no andar de baixo de um hotel e só funcionava dois dias por semana, duas horas por dia – ninguém faz nada de errado em Weggis.
Quando cheguei e informei que queria registrar a ocorrência de um roubo, os suíços ficaram escandalizados. Um roubo em Weggis? Não podia! Muito constrangidos, me passaram um folha de papel almaço e uma caneta, onde descrevi o que aconteceu.
Dias depois, o prefeito de Weggis foi me procurar. Estava consternado, e queria reparar o dano. Em uma cerimônia realizada no campo de treino do Brasil, deu-nos um laptop novinho. Passei-o ao Professor. Era com aquele laptop que ele ficaria o resto da Copa.
Bem. O laptop era ótimo, mas no teclado não existia o cedilha e os acentos se perdiam entre dáblios e ípsilones hostis. O Professor fazia um esforço comovente para escrever com aquele teclado, pedia socorro de 15 em 15 minutos, suspirava, rosnava, de vez em quando uivava e volta e meia gritava, não sem dor:
– Oh! Deus! Perdi tudo!
Mesmo assim, nós e a Seleção fomos avançando, até aquela partida decisiva contra a França de Zidane, em Frankfurt. Foi lá, antes do jogo, no centro de imprensa, que aconteceu. Eu estava sentado em frente ao Professor. Ambos escrevíamos frenética e concentradamente – tínhamos de entregar adiantamentos de texto antes de o jogo começar. O Professor, lutando contra o teclado, gemia baixinho. De repente, ele parou. Juntou as mãos como se fosse fazer uma oração. Encheu os pulmões de ar. E declarou, com certa solenidade:
– Estou desistindo do cedilha!
Agora, 10 anos depois, vi aquela placa e pensei: o americano do restaurante também desistiu do cedilha. E então, confesso, fui tomado de nostalgia por nossa língua tão harmônica. A última flor do Lácio, inculta e bela, desconhecida e obscura, como dizia Bilac. Que seja tudo isso, mas é também requintada, insinuante e macia, como as mulheres mais perigosas.
Os americanos são práticos até para se comunicar. É da cultura deles. Mas nós... ah, conosco é preciso um pouco mais de sofisticação, um pouco mais de reflexão, um pouco mais de calma. Falar com cê cedilha não é para qualquer um.
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