26 de novembro de 2016 | N° 18699
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO
A ALEPPO DE TODOS NÓS
A banalização da morte, que tanto choca as pessoas de bem quando envolve alguém que conhecemos, passa por um processo de amortecimento quando se trata de um desconhecido, mas que, para sorte nossa, vivia de preferência em outra cidade ou, se na mesma, ao menos em outro bairro, desses que nunca frequentamos, de modo que ele, com certeza, nunca cruzou nosso caminho.
Não é que não nos importemos, mas convenhamos: não dá para ficar sofrendo com a mesma intensidade que afetou os envolvidos, porque explodiríamos de dor, ainda mais depois que o mundo se transformou neste lugar tão perigoso de se viver e a mídia passou a nos inundar todos os dias com essa lava vulcânica de notícias ruins.
Então, parecemos indiferentes, como se todas as tragédias tivessem um palco remoto, uma espécie de Aleppo do mundo, que muitos nem sabem que fica na Síria e que foi a mais linda cidade daquele país, e que contou, nos bons tempos, com mais de 3,5 milhões de habitantes, que pareciam felizes e recebiam maravilhosamente os turistas ricos que se hospedavam no Sheraton Aleppo e percorriam de limusine os pontos turísticos da região.
Como raros conhecem a história política da Síria (e para que conheceríamos?), soa incompreensível que periodicamente descarreguem bombas e mais bombas sempre sobre o mesmo e pobre lugar de nome estranho e, em seguida, emitam um boletim lamentando as mortes não previstas de dezenas de civis, catalogados apenas como danos colaterais. Seja lá o que isso signifique, ficamos sempre com a impressão de que mais do que pretender justificar, eles queriam mesmo era dizer: tanto faz.
Alienados do sofrimento alheio, nos comportamos como críticos apáticos do mal que não podemos modificar e citamos cifras horrorosas com a naturalidade de quem não tem nada a ver com isso. No entanto, quando alguém ousa transportar a desgraça para a nossa porta e debater conosco o sentimento resultante, bom, aí as coisas mudam tanto que usualmente choramos só de imaginar que aquilo podia envolver um dos nossos amados, intocáveis na nossa fantasia alienada.
Um vídeo impactante que circula na rede mostra um homem do povo questionado sobre o índice de criminalidade de uma cidade inglesa onde, no período de um ano, teriam ocorrido 252 mortes violentas. Admitindo que este número era alarmante (eles não têm ideia de que esta cifra corresponde a um feriadão pacífico numa grande metrópole brasileira), o repórter pergunta: “Que número o senhor consideraria razoável para esta situação?” Uma rápida reflexão e ele estipula: “Setenta, acho que 70 seria razoável”.
E, então, começa a migrar pelo amplo corredor de acesso a esta área um bando de gente de todas as idades que ele imediatamente reconhece como sua família. E o repórter lhe pergunta: “E agora, qual número o senhor acharia aceitável?”. E ele, secando as lágrimas: “Zero. Tem de ser zero!”.
Não importa a distância ou a latitude. Não existe ninguém que não faça falta para alguém.
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