domingo, 31 de dezembro de 2023



31.dez.2023 às 7h00
Giovana Madalosso - Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

Me recuso a perder a esperança

Sentimento cigano, a esperança nunca vem para ficar; tudo o que podemos fazer é tentar segurá-la pelo maior tempo possível

Neste ano que vai embora, a esperança tentou ir embora junto. Ou será que fomos nós a afugentá-la? Já começou no 8 de janeiro, quando homens atacaram com paus e pedras a imberbe democracia. Lembro da hora em que minha esperança fugiu sem dizer se voltava: foi quando um deles mostrou a bunda enrolada em uma bandeira —como é feia a face glútea da ignorância.

Não sei bem quando a minha esperança reapareceu, mas me lembro de senti-la ao meu lado meses depois ao ver uma garota cruzar o Círculo Polar Ártico sozinha a bordo de uma embarcação de nome Sardinha. Se dois bíceps tão finos e um veleiro tão frágil podem enfrentar o mar revolto, quantas coisas uma população de 8 bilhões de pessoas não podem enfrentar juntas?

Pena que nem sempre 8 bilhões de pessoas estão juntas, como a guerra logo veio para lembrar. Um certo horror, que julgávamos enterrado, reapareceu na estrela de Davi pichada de forma antissemita numa porta, em bebês feitos de refém, em hospitais bombardeados, em 8.000 crianças palestinas mortas, em outras sendo amputadas sem anestesia, na fome sendo usada como arma de guerra, no mundo assistindo a isso calado. Sem falar nos outros conflitos.

Nem os donos das esperanças mais aguerridas foram capazes de mantê-las por esses meses. E a minha só deu as caras (para sumir logo depois) quando uma refém desta mesma guerra, recém liberta, virou para o seu algoz, apertou sua mão e disse: shalom.

"O punho uma vez foi uma mão aberta e dedos", escreveu o poeta Yehuda Amichai, conterrâneo desta mesma refém, uns anos antes.

"Para escrever um poema que não seja político / devo escutar os pássaros / mas para escutar os pássaros / é preciso que cesse o bombardeio", escreveu o palestino Marwan Marhoul. A poesia não salva a humanidade, não salva o leitor, não salva sequer o poeta, mas às vezes a sua beleza pode salvar o minuto. E é na trégua dos minutos que a esperança reaparece.

Sentimento cigano, a esperança nunca vem para ficar. Tudo o que podemos fazer é tentar segurá-la pelo maior tempo possível. Como a respiração de um mergulhador, o peito se expandindo, se exercitando para tirar o máximo do pouco que se tem.

Agora em novembro, quase perdi de vez a esperança ao acompanhar uma mesa de negociações que decidia a temperatura da Terra e, portanto, se será viável a vida neste calejado planeta.

Por alguns dias pensei que estávamos fritos, totalmente vendidos para os produtores de petróleo que sediavam o encontro e já começavam a redigir um acordo drástico, mas então uma criança invadiu com um cartaz a mesa da ONU e o representante de um país insular que poderá ser engolido pela água levantou a voz "não desceremos silenciosamente aos nossos túmulos aquosos!", e as negociações foram interrompidas para serem retomadas em melhores termos (ainda que bem longe dos ideais).

Quando tudo parece perdido, há sempre uma pessoa que aparece com um discurso, um aperto de mão, um poema, um cartaz, um veleiro, uma perspectiva, um grito, uma proposta, um aceno, uma escola de dança em uma terra devastada. Não sei se acredito na humanidade, mas ainda acredito nas pessoas.

Pode parecer inocência tentar manter alguma esperança (e é mesmo), mas qual o sentido de viver sem ela? Que nesta virada de ano esse sentimento duro de agarrar esteja com você.

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