quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019



27 DE FEVEREIRO DE 2019
PEDRO GONZAGA

DESAFIO

E se eu vos propusesse um desafio?

Diga qual, clamam já os afobados. E não vos critico, é um tempo de corações ligeiros, que pulsam ou necrosam à pressão de um mero polegar. De fato, uma vez enleados pelos cipós da curiosidade, ficamos pouco dispostos a conceder mais do que algumas linhas para alguém desembuchar a provocação. Eu vos entendo: se pudesse me constranger pelo que estou fazendo, eu me constrangeria.

Mas vamos ao desafio. Trata-se de voltar a nossos artistas prediletos sem cair nas generalizações que nós mesmos criamos para domá-los, em frases como me encantam os labirintos de Borges ou a profundidade do intimismo de Clarice Lispector ou, ainda, a desumanização da burocracia em Kafka. Nada disso diz nada, nada disso guarda qualquer efeito que o contato com essas obras nos tenha provocado. Chega de generalizações, voltemos a trechos desses gigantes que possam ser guardados. A beleza do detalhe, o universo no fragmento, não a universalização oca. Não o profeta Leonard Cohen, mas sim quatro versos de A Street: "A festa acabou/ mas ainda estou de pé/ espero nesta esquina/ onde antes existia uma rua". Não as finas ironias de Machado, o bruxo do Cosme Velho e outros que tais, mas "a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel, só o interesse é ativo e pródigo". E por que reduzir a poeta Wislawa Szymborska a qualquer epíteto se posso lembrar de "que me desculpe o antigo amor por tomar o novo como primeiro."

O mesmo vale para o cinema. Selecionemos uma cena para não esquecermos, depois a mostremos aos outros e a nós mesmos feito um testemunho de como essas imagens expandem o que somos, de como revelam, de um modo material, coisas que antes apenas etéreas em nós nos habitavam.

Mas se fizermos isso não pareceremos participantes de uma corrente de rede social? Que pareçamos. Desde quando o amor se aborrece com demonstrações públicas? Creio que só é realmente importante para o outro aquilo que revelo antes ser capital para mim. O resto é enxurrada de nomes, a forma mais baixa de angariar respeito de alguém. E logo vêm os adjetivos e substantivos triviais de que já falamos. Não seria melhor, em vez disso, lembrar de Michael Caine correndo um quarteirão inteiro para fingir topar casualmente numa das irmãs de Hannah? Ou lembrar de outras cenas verdadeiramente acesas quando desce o avesso das pálpebras? Eu vos desafio.

PEDRO GONZAGA

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