sábado, 16 de fevereiro de 2019



16 DE FEVEREIRO DE 2019
DAVID COIMBRA

Chama um homem

A geladeira estava fazendo um barulho estranho. Não sabia disso, até a Marcinha gritar, a urgência explodindo nas sílabas:

- Corre aqui! Corre aqui! Larguei o livro que lia, sobre Fredegunda - um dia conto sobre Fredegunda -, e fui acudir. Podia ser algo grave.

- O que foi? - perguntei, ao chegar à cozinha. - A geladeira está fazendo um barulho estranho.

Minha primeira reação foi ficar levemente agastado. Precisava tanto alarme? Precisava me apartar da leitura sobre Fredegunda? Mas me contive. Não protestei. Você há de ter paciência, se quiser levar uma vida conjugal pacífica. As pessoas têm necessidades, vontades e hábitos diferentes, mesmo estando juntas.

- Está ouvindo? - insistiu a Marcinha, apontando o queixo para a geladeira.

Realmente, a coisa rosnava como o leão da Metro. - Vamos chamar um homem - propôs a Marcinha.

Isso me deixou ainda mais irritado. Como assim, "um homem"? E eu, o que era? Está bem, concordo que não sou exatamente um sucesso em trabalhos manuais. O laço do sapato, inclusive, nunca aprendi a amarrar pelo método ortodoxo. Tive de criar minha própria fórmula. Que, por sinal, funciona muito bem. Tenho amarrado sapatos toda a vida e caminhado impávido por aí.

Chamar um homem. Francamente. - Não precisa - desdenhei, usando uma voz de especialista que tenho. - Daqui a pouco ela para de fazer esse barulho estranho.

A Marcinha me lançou um olhar desconfiado, mas, na verdade, minha observação era baseada em alguma experiência. Já tive geladeiras. A primeira, inclusive, compramos usada, eu, a Nádia Couto e o Sidnei Cruz, colegas de Diário Catarinense com quem dividia o apartamento em Criciúma, nos anos 80. Era uma geladeira amarela, mas, como a nossa cozinha era toda azul, a Nádia teimou em pintá-la. Eu não queria. O que é que tem uma geladeira amarela em uma cozinha azul? Só que a Nádia insistiu, para ela era importante a harmonia cromática. Tudo bem, a geladeira foi pintada.

Continuei com aquela geladeira azul por bastante tempo. Levei-a comigo, ao voltar para Porto Alegre, e ela me serviu fielmente em um JK no qual morava, no Passo d?Areia. Ela fazia barulho, minha repintada geladeira, e às vezes tremia, chegando a mover-se de forma ameaçadora pela minúscula cozinha. Acho que foi por isso que a minha madrinha Sônia me deu uma nova quando me mudei para um apartamento melhor, de um quarto, na Rua Portugal.

Essa segunda geladeira era moderníssima, possante, cheia de compartimentos e botões misteriosos. Certa feita, uma moça pela qual estava interessado amorosamente, tendo ingressado no meu apartamento pela primeira vez, levou a mãozinha à porta da geladeira, alisou-a como se fosse um gato e comentou:

- Boa geladeira.

Corei de orgulho. E pensei: vou me dar bem.

Pois essa geladeira também roncava, ainda que mais baixinho, feito arrulho de pombo. Um dia, porém, ela simplesmente deixou de funcionar. Faleceu. Comprei outra, ainda mais moderna, um verdadeiro foguete. Que, adivinhe, roncava.

- Acho melhor chamar um homem - voltou a Marcinha. Ela realmente não confia em minhas habilidades domésticas.

Mas, neste exato momento, a geladeira emudeceu. - Olha? - admirou-se a Marcinha. Inflei o peito e sorri, vitorioso.

Você pode perceber o deslumbramento reluzir no rosto de uma mulher quando ela vê um homem desembaraçar-se bem de uma tarefa braçal. Nos meus tempos de solteirice, a morena do sétimo andar bateu à porta do meu apartamento numa noite de chuva. Ela tinha olhos da cor do mar da Praia Brava e usava shortinhos minúsculos, de onde saíam duas pernas que pareciam ter sido besuntadas com mel e creme de avelã. As mãos pequenas seguravam um vidro de pepinos em conserva.

- Oi, vizinho - miou, me apresentando o pote. - Pode me ajudar a abrir isso? - Ela encompridou significativamente aquele isso. Assim: "Iiiiiisso".

Ergui uma sobrancelha. Há coisas que só um homem pode resolver para uma mulher. - Claro, beibe. Dê cá.

Tomei o vidro com a mão esquerda. Levei a direita à tampa de metal. E forcejei. Gnmmmmm. Forcejei. MAGMTZMMMMMMM!!! Pressenti que a maldita tampa não ia abrir, por mais força que fizesse. Levantei a cabeça. Olhei para a morena. E vi. Lá estava, desenhada em seu rosto, uma expressão mezzo decepção, mezzo desprezo. Talvez mais desprezo. Depois de mais algumas tentativas, disse que ia dilatar a tampa com fogo, mas ela puxou o vidro de minhas mãos e informou, com o menoscabo escorrendo das vogais:

- Não precisa. Vou pedir pro cara do terceiro andar.

Foi um fracasso. Mais um. E agora, sabe o que aconteceu? A desgraçada da geladeira voltou a fazer um barulho estranho. Só que ainda mais estranho, ela resfolgava e gania, era um bicho nos estertores da morte, pedindo socorro. Assustei-me. A Marcinha se assustou. Ela olhou para mim. Pôs as mãos na cintura. Abriu a boca. Antes que falasse, levantei os braços, interrompendo, e decidi: 

- Vamos chamar um homem.

DAVID COIMBRA

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