sexta-feira, 14 de setembro de 2018


Jaime Cimenti
Os meninos e os homens 

Chego no Cosme Velho, no Rio de Janeiro. Na rua Cosme Velho, 1.105, está a Casa Roberto Marinho, construção em estilo colonial brasileiro, inspirada no Solar de Megaípe, de Pernambuco. Lá viveu por umas sete décadas um de nossos brasileiros mais ricos e poderosos, homem que comandou o maior conglomerado de comunicações do País e participou ativamente da vida nacional. 

Sem perder a escala, a calma e a simplicidade, depois da reforma, a casa ajustou-se às novas funções públicas do Instituto Casa Roberto Marinho. O local abriga espaços culturais, com foco em arte e educação, mais um centro de referência da arte moderna e do abstracionismo informal. 

Com 1,2 mil metros quadrados de área expositiva, em meio a jardins de Burle Marx com 10 mil metros quadrados, a instituição reverencia o amor que o doutor Roberto tinha pela cultura, comunicação, artes e educação. Ele gostava de ver crianças de escolas visitando exposições. No primeiro andar está um de seus quadros preferidos, obra de José Pancetti, que retrata um boneco e três frutas. 

Ao lado, um belo texto de Roberto Marinho sobre ele. O texto lembra o verso do poeta inglês Wordsworth "o menino é o pai do homem". O verso, aliás, dá título a um dos capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. O texto do Dr. Roberto lembra a última palavra pronunciada por Charles Foster Kane, protagonista do filme Cidadão Kane, inspirado no magnata William Randolph Hearst: Rosebud, a marca do trenó da infância de Charles, um dos homens mais poderosos e ricos do mundo. Meninos, homens. Brinquedos imortais. 

Fernando Sabino, que alguns chamavam de Fernando Bambino, disse que quando era menino os mais velhos lhe perguntavam o que seria quando crescesse. Passadas décadas, não lhe perguntavam. Se perguntassem, Sabino dizia que responderia: quero ser menino! O pintor Iberê Camargo andou pelo mundo e disse que nunca esquecia Restinga Seca, onde, quando menino, pela primeira vez, viu a luz do sol em Restinga Seca. 

A foto do quadro de Pancetti e o texto do Dr. Roberto estão disponíveis em meu Instagram (jaimecimenti), mas aqui transcrevo as palavras de Marinho: "Toda vez que olho esse pequeno quadro de Pancetti, tenho a comovida sensação de estar olhando para dentro de mim mesmo. Tem ele um poder evocativo que me fascina, pois dentro desse boneco há um menino, envolto de solidão, mistério e fantasia. Indiferente ao passar do tempo, como se algo de eterno o preservasse, o menino que pressinto dentro do boneco vive em algum encantado recanto de minha infância. 

Singelamente cercado de frutas - a pera, a ameixa e a laranja- ele as transforma em brinquedos simples e coloridos. E com eles cria o seu mundo de sonhos e de paz. Minha secreta paixão por esse quadro talvez se explique pelo fato de eu vê-lo como um símbolo do momento solitário em que o menino desenha, com as cores da pureza, o futuro do homem que ele será, um dia". 

A propósito... 

Nosso grande pintor rio-grandense Eduardo Vieira da Cunha retrata, nas muitas cores de suas telas, muitos brinquedos de menino, a partir de lembranças de infância. No quarto de Frank Sinatra havia a frase: "morre mais feliz quem morre com mais brinquedos". 

O menino é o pai do homem, para lembrá-lo das coisas lindas ou terríveis da infância, para dizer para sempre a ele que o adulto jamais deve sepultar o brilho do olhar, a curiosidade e as essências dos seus dias fundadores. 

O menino pai do homem somente deve ir-se quando o homem se for. Mas as pessoas não se vão, ficam encantadas. Só se vão para sempre quando ninguém mais lembra delas. Mas aí outros meninos e homens virão, virão e virão, na espiral eterna da vida. 
(Jaime Cimenti)   - 

Jornal do Comércio (https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2018/09/648137-os-filhos-da-sociedade-liquida.html)

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