sábado, 10 de março de 2018



10 DE MARÇO DE 2018
DAVID COIMBRA

Uma boa razão vale um milhão

No Ceará, bandidos torturaram três moças e depois as decapitaram, porque elas pertenciam a gangues rivais. Gravaram os assassinatos pelo celular e postaram orgulhosamente na internet.

Em Porto Alegre, dois rapazes foram obrigados a cavar a própria cova em um terreno baldio. Terminado o trabalho, fuzilaram-nos dentro do buraco. Um deles ainda estava meio vivo, mas os executores não se importaram de, ainda assim, encharcar os corpos com gasolina e atear-lhes fogo. Isso também foi filmado e espalhado pelo WhatsApp afora.

No Rio, queimar pessoas vivas tornou-se hábito. Os traficantes desenvolveram gosto por prender as vítimas no interior de pneus empilhados, o que facilita para acender a fogueira e evita que a pessoa saia correndo por aí em chamas, causando incêndios indesejados. Eles chamam essa prática, divertidamente, de "micro-ondas".

O Estado Islâmico tem muito a aprender com os brasileirinhos.

Como se explica tanta crueldade?

Como se explica que o Brasil seja o país mais violento do mundo?

Como se explica que a desonestidade campeie em todas as classes sociais e em todas as regiões?

Pobreza? Há muitos países mais pobres do que o Brasil e muito menos violentos. Na Índia, a população, a pobreza e a desigualdade são maiores e a violência é bem menor. Dez vezes menor.

Quanto à desigualdade, olhe para os Estados Unidos: nos anos 1970, os Estados Unidos eram mais iguais do que hoje. E muito mais violentos. A desigualdade aumentou, a violência diminuiu.

Reúna todos os fatores em geral associados à violência: pobreza, desigualdade, impunidade, corrupção, má qualidade de ensino. Reúna tudo o que você encontrar de ruim no Brasil. Ainda assim, a crueldade e os níveis de desonestidade são inexplicáveis.

O que houve, no Brasil, foi uma progressiva ruptura moral. As famílias se desmancharam e, assim, desmanchou-se o país.

Já contei mais de uma vez sobre as muitas visitas que fiz à Fase, a antiga Febem. Conversei com dezenas daqueles meninos. Nunca encontrei, entre eles, um só que experimentasse cuidados de pai e mãe. A maioria tinha apenas a mãe como referência, alguns nem ela. Se o pai não era desconhecido ou abusava dos filhos, tratava-se de um bêbado, um drogado ou simplesmente de um ausente.

Por miserável que seja a família, se há pai e mãe atentos em casa, os filhos se tornarão cidadãos decentes. Família inteira, filhos íntegros.

A premissa contrária é verdadeira. Tome aquela mãe da classe alta que não aceita que o filho seja punido na escola ou que, quando ele tira nota baixa, vai reclamar da professora, em vez de colocá-lo no castigo. Ela está produzindo o corrupto do futuro.

Quando não é submetido a regras em casa, o filho não aceita regras na rua. Disseram ao brasileiro, seja rico, pobre ou remediado, que ele é uma vítima do sistema injusto, que ele tem que lutar por seus direitos e que só o que importa na vida é ser feliz. O brasileiro acreditou.

O ser humano, para fazer o mal, só precisa de uma boa razão que lhe sossegue a consciência. Ao brasileiro sempre são dados argumentos razoáveis para que descumpra regras ou passe por cima das leis. Ele não assume responsabilidades, ele não tem culpa de nada. Então, ele começa tomando o que não é dele - porque, afinal, é uma injustiça que o outro tenha e ele não. 

Ele também pode parar uma rua, porque ganha pouco, ou invadir o prédio de um jornal, porque, afinal, ele está fazendo a revolução. Se ele for empresário, ele pode sonegar impostos, porque é extorquido pelo governo. Ou corromper o governante, porque é a única forma de ganhar uma concorrência. Se ele for do governo, pode aceitar presentes de empresários, comprar parlamentares e fazer negócios escusos com empreiteiros ou ditadores estrangeiros, porque é a única maneira de aprovar seus projetos de salvação dos pobres.

Cada qual tem sua justificativa. Cada qual tem direito de atropelar os direitos dos outros. Os limites vão sendo rompidos, a moral vai sendo esgarçada. Até que chegue ao ponto em que cortar uma cabeça ou queimar outro ser humano vivo também seja um direito. Com um bom motivo, você pode tudo.

DAVID COIMBRA

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