segunda-feira, 26 de março de 2018



24 DE MARÇO DE 2018
CLÁUDIA LAITANO

O OPOSTO DO ÓDIO

Se fosse personagem de novela, a desembargadora Marília Castro Neves seria aquelas vilãs quase engraçadas de tão caricatas - do tipo que tortura a mocinha durante 200 capítulos e depois acaba louca, escabelada e falando sozinha. Em comentários recolhidos de postagens antigas, descobriu-se, nos últimos dias, que a desembargadora já havia ofendido negros, gays, mulheres, pessoas com Síndrome de Down - tudo isso antes de chamar atenção fazendo acusações falsas contra uma pessoa que ela não conhecia e que acabara de ser assassinada algumas horas antes.

Mas a desembargadora do Rio de Janeiro não é de mentirinha, muito menos louca ou excepcional - no sentido de rara. Ela é apenas uma pessoa comum que, por caso, ganhou notoriedade expressando-se de uma forma que não é estranha para ninguém que frequente a internet. De onde ela veio, há milhões de anônimos pensando e escrevendo da mesma forma. De todas as idades, classes sociais e perfis ideológicos. "Uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia", nas já clássicas palavras do ministro Luís Roberto Barroso. Gente que encontrou um canal de expressão, uma linguagem e uma ética própria: para os meus, tudo; para os outros, paredão.

Odeio, logo existo, é uma forma de estar no mundo e de se relacionar com as outras pessoas cada vez mais comum. Pode ser aplicada a embates de todos os tipos, dos mais graves aos mais inofensivos: política, religião, estilo de vida, gostos musicais, dieta. O ódio define, situa, agrupa.

Trata-se de um desdobramento de certa forma inesperado daquela que parecia ser a vocação original da internet: diminuir distâncias, aproximar estranhos em torno de interesses comuns, criar comunidades. Formaram-se agrupamentos, é verdade, mas não apenas em torno de afinidades positivas. O ódio mostrou-se um catalisador igualmente poderoso e sedutor. Diante de uma plateia de pessoas que odeiam as mesmas coisas - também conhecida como "bolha" - mostrar-se arrebatado e radical é uma forma de destacar-se no meio da multidão. Não importa o quão incompatível o discurso se mostre em relação aos valores que a pessoa pareça estar defendendo, porque coerência não é uma mercadoria muito valorizada nesse ambiente de extremos. Ódios extremos, irracionalidade extrema, necessidade extrema de atenção e reconhecimento.

A cultura do ódio é o tema de um livro que está saindo do forno nos EUA, The Opposite of Hate ("o oposto do ódio", em tradução literal), da comentarista política Sally Kohn. A autora se coloca entre os liberais americanos, a turma que se opõe a Donald Trump e a tudo que ele significa. Ainda assim, Kohn defende o resgate da capacidade de ouvir e de aceitar o outro, como caminho para interromper a escalada da intolerância e possibilitar o diálogo. A autora conversou com cientistas e pesquisadores, investigando as raízes evolucionárias e culturais do ódio, para mostrar como uma simples falta de civilidade pode abrir caminho para coisas muito piores.

CLÁUDIA LAITANO

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