sábado, 30 de março de 2019



30 DE MARÇO DE 2019
LYA LUFT

Nada é banal (com um sopro de poesia)

Os deuses estavam de bom humor: abriram as mãos e deixaram cair no mundo os oceanos e as sereias, os campos onde corre o vento, as árvores com mil vozes, as manadas, as revoadas - e, para atrapalhar, as pessoas, que roubaram o espetáculo, misturaram as falas, rasgaram os cenários e mataram os atores.

O coração bate com força, querendo bombear sangue para as almas anêmicas. Mas onde está todo mundo? Correndo atrás da bolsa de grife, do iPod, do iPad, do corpo perfeito, do prazer máximo, da eternidade... ou de coisa nenhuma.

Tudo menos parar, pensar, contemplar. "Se eu paro pra pensar, desmorono."

Enquanto isso, a Morte enrola e desenrola seu rabo curvo atrás da porta, estreita os olhos, espreita, palita os dentes e... espera.

A menina complicada, lunática, enluarada, olhava atentamente os rostos adultos na grande mesa onde se lançavam de um lado para outro palavras e gestos como facas ou plumas. Ah, e os olhares... Amar para ela era natural como as cores e perfumes no jardim da mãe. Era assim para todos?

Ela consigo resolvia: claro que todos se amam. Ninguém vive de restos. Ninguém mente tão bem, com esses sorrisos e frases delicadas. E saía para brincar. Quando a vida não foi mais brincadeira, ela ainda queria adivinhar: esses se amam, seu silêncio é cumplicidade ou tédio? Querem estar longe ou gostam de estar perto? As amigas a chamavam de romântica: quem ainda se interessa por isso? Curte o momento! E riam.

Mas ela haveria de morrer achando que sem amor não valia a pena nem o primeiro passo na ponte que levava ao castelo.

Porque nada era banal: o lixo na praia, a mulher parindo no corredor de ladrilhos, as multidões iludidas, as ilhas dos amantes. Tudo era imenso, essencial, e terrível.

Por um instante, a gente desliga os aparelhos e vive um pouco. E percebe, como com um novo olhar, a luz que se filtra na mata, poeirinhas, polens, saliva de fada que ri à toa, ou caspa de duende armando suas artes.

A ventania chega atropelando tudo: recolhem-se crianças e coisas, e se aprecia a tempestade atrás da janela, como se espia a vida, sem ver direito, atrás da máscara de cada dia. Logo ali, o grande mundo mói a vida com suas engrenagens cruéis: mas naquele momento, naquela redoma de vidro simples na chuva cotidiana, no bosque encantado, fica o castelo da Bela Adormecida, ou a casa dos sete anões, ou de uma bruxa quase boa?

É assim o tempo: devora tudo pelas beiradinhas, roendo, corroendo, recortando e consumindo. E nada nem ninguém lhe escapará, a não ser que faça dele seu bicho de estimação.

Como acontece com as perdas: o jeito é perdê-las. E a vida? Há que vivê-la para saber.

(Nada é banal: a gente é que esquece.)

LYA LUFT


30 DE MARÇO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Se Deus fosse consultado


Falam tanto em nome dele, que até parece que carregam uma procuração no bolso. Não há pronunciamento do governo em que Deus não seja invocado, como se fizesse parte da equipe ministerial, como se tivesse sido o patrocinador da campanha, como se houvesse aberto o voto. Até onde sei, Deus não vota. Votar é tomar partido e, se bem me lembro, estamos falando de um pai que tem uma família numerosa de filhos, não só 01, 02 e 03. Não que religião seja um assunto que eu domine ou particularmente me interesse, mas tenho certeza de que ele não tem sido consultado por essa turma que age como porta-voz de Sua Santidade.

Deus acima de todos? Verticalidade é um conceito obsoleto que não promove laços, e sim obediência e rendição. Esta visão imperativa de Deus gera pensamentos fechados e coloca a nação de joelhos. E, se por um lado isso dá alívio e segurança a muitos, a mim parece que incentiva a submissão e a ignorância. Precisamos, ao contrário, ser incentivados a pensar por conta própria, a ter dúvidas, a aprender com nossos erros e a exercer nossa própria autoridade moral perante os fatos. Precisamos nos responsabilizar pelo que decidimos e pelo que nos acontece. Precisamos ser um povo que defende a sua vontade e luta por seus direitos.

Cada um tem seu Deus e isso deve ser respeitado. O meu é horizontal. Não está acima de todos, e sim ao lado. É expandido. No modo particular como lido com este assunto, nada combina menos com o simbolismo de Deus do que a imposição do maniqueísmo, da violência e das verdades únicas. Deus não governa. Deus inspira.

Se fomos criados a sua imagem e semelhança, então somos todos feitos de empatia e solidariedade. Esse é o nosso espírito comum, que, infelizmente, em muitos casos se desagrega e se corrompe. Cada um nasceu com uma espécie de Deus dentro, que ao longo da vida vai tendo representações diversas, não só dogmáticas, mas espirituais em outros sentidos - reverência à natureza e dedicação à arte, por exemplo. Somos irmãos em espécie, em humanidade. Cada um de nós, incluindo os ateus, é o Deus do outro. O que equivale a dizer que não existe hierarquia, e sim troca.

O Estado é laico. Não é uma igreja. Não tem fiéis, e sim cidadãos que pensam e vivem de forma diferente entre si. O Estado tem de promover a justiça, a paz e a igualdade social sem interferir nas crenças da população. Somos livres para alimentar nossa alma do jeito que desejarmos, e ninguém deve impor sua escolha aos outros. Se Deus fosse consultado, creio que pediria para prestarmos mais atenção no que diz o papa Francisco, que é quem realmente consegue traduzir Deus em sua essência. Mas Deus não tem sido consultado e a bravata em seu nome corre solta, como se ele não passasse de um reles cabo eleitoral.

MARTHA MEDEIROS

30 DE MARÇO DE 2019
CARPINEJAR

Sem sinal no coração

Quando você vai viajar para o interior do Rio Grande do Sul, não invente de brigar com a esposa. Nem estou falando da saudade frustrada e da dificuldade de ser feliz quando aquela pessoinha que você ama está triste e chateada.

É porque não terá como fazer as pazes se mudar de ideia. Ou se ela mudar de ideia. Nossas estradas não permitem arrependimentos. Nossas estradas não ajudam reconciliações. Nossas estradas são os pontos cegos e surdos do relacionamento.

Mesmo que perceba que cometeu um erro, exagerou no ciúme, foi grosseiro, intempestivo e afobado, mesmo que encontre as palavras inspiradas para a remissão dos pecados, não poderá falar nada até chegar ao seu destino, que pode ser Uruguaiana ou São Borja.

Dificilmente encontrará sinal telefônico para uma conversa maior do que três minutos. Só dá para gaguejar. Se ela ligar não ouvirá tudo e cansará o dedo tentando retornar várias e várias vezes. Ela não entenderá que está em trânsito, pensará que foi intencional e desligou na sua cara. Mulher não suporta que interrompa o seu raciocínio longo e cheio de digressões. Ela enlouquece quando a sua moral da história é atrapalhada. A desculpa virá apenas depois que provar que prestou atenção.

Entenda, portanto, qual será o estado de nervos dela com a falta de sequência e continuidade da conversa. Nem busque argumentar dizendo que não tem culpa, que é problema da operadora, ela botará o barraco na sua conta: por que foi viajar apesar do desentendimento?

Talvez ela deixe de ouvir quando você já falou sozinho durante um tempão, sem perceber, com um telefone queimando a orelha, que a ligação caiu e sem prever muito menos o que ela escutou. Também amargará os piores pensamentos e pressentimentos com a profusão de mal-entendidos. Alguns minutos de raiva aparentam anos de espera.

Pode arriscar digitar textos ou mandar áudios, mas eles permanecerão engavetados no WhatsApp e apenas seguirão quando menos espera, numa ordem absolutamente arbitrária.

É impossível relaxar com os pensamentos repetitivos. Seguirá com os diálogos esquizofrênicos, numa insistência vã e absurda, ainda que mantenha a definitiva consciência da impossibilidade. As respostas surgirão antes das perguntas e não desfrutará do extintor de incêndio dos emojis para remediar as ofensas.

Melhor era ter ficado em casa.

CARPINEJAR

30 DE MARÇO DE 2019
PIANGERS

Internet, dá um tempo

Vai fazer cinco meses que não atualizo minhas redes sociais. Meu histórico ainda está lá, mas não tem nada de novo. Um perfil fantasma sem foto e nem vídeo desde a primavera passada. Primeiro eu pensei: está chegando o verão, época de aproveitar com a família. Não vou ficar postando foto. Daí então, como não ia postar fotos, passei a tirar menos fotos. Daí então, como não ia tirar fotos, passei a andar sem o celular. Daí então, como estava sempre sem o celular, passei a olhar mais ao redor, para as pessoas, as casas, a natureza. Achei gostoso e fui ficando.

Virei um alienígena. Na sala de espera do médico todo mundo olhando pro celular, eu virei aquele simpático que puxa conversa. Na saída da escola, todos os pais olhando pro telefone, eu olhando as crianças brincar. No restaurante, mesmo quando almoço sozinho, estou olhando pela janela, pra comida, sentindo o aroma do tempero. Esses dias encontrei um bicho na alface e me perguntei quantas vezes comi um desse, enquanto almoçava respondendo e-mails.

Passei a ler mais livros. Tenho tempo de assistir a filmes antigos que sempre quis ver. Saio com meus amigos e conversamos por horas, sem olhar o celular. É claro que tem desvantagens: não sei qual é o meme do momento; não entrei no último challenge do Facebook; não estou por dentro dos bastidores dos reality shows, nem sei nada sobre nenhum dos envolvidos nas festas que aconteceram em Fernando de Noronha - e imagino que seja assunto velho, me desculpem. Mas também não fico até as 3h da manhã em discussões sobre política no Twitter; não troco o sorriso das minhas filhas pelo sorriso de outras pessoas no Instagram; não fico até de madrugada jogando Candy Crush e depois digo que não tenho tempo pra nada.

Ouço as pessoas reclamando que não têm tempo, que estão cansadas. Recomendo deletar todas as redes sociais e todos os jogos do celular. Vai parecer que o dia tem 50 horas.

Minhas filhas perceberam que não estou no celular, então também não pedem. A mais velha tem usado apenas para pesquisar as tarefas. A mais nova não assiste ao YouTube há semanas, desde que descobriu os gibis da Mônica. Depois que lê todos, pede pra ir no sebo e trocar por novos. E influencia as amigas: esses dias passou um final de semana com uma colega viciada em YouTube, e na noite de domingo era a menina que tinha se transformado. Só quer saber de gibi da Mônica. Estão a salvo da sinistra boneca Momo.

Sempre fui um entusiasta da tecnologia, um early adopter de todas as redes sociais. Fiz um blog em 2001, entrei no Twitter em 2008, no Instagram em 2010, tive um vlog no YouTube em 2009. Não havia quase ninguém lá. Mas, agora, sinto que virei um early desadopter: estou me distanciando daquilo que não me deixa mais produtivo e não me deixa mais feliz. Por enquanto, está maravilhoso.

PIANGERS


30 DE MARÇO DE 2019
PAULO GERMANO

Os animais marinhos em desenhos animados

Não tenho filhos, mas pretendo tê-los, e uma coisa tem me preocupado. Já escrevi sobre isso, mas, como ninguém deu a mínima, repito que alguém precisa falar sobre os nomes dos animais marinhos nos desenhos animados. Pelo bem das nossas crianças, já passou da hora de protestarmos contra os nomes dos animais marinhos nos desenhos animados.

Aquele personagem do Pica-Pau, por exemplo, o Leôncio. Com esse nome, qualquer um diria que se trata de um leão-marinho, certo? Errado! O nome original do Leôncio é Wally Walrus, e walrus é morsa, portanto o Leôncio é uma morsa. Só que morsas só existem no polo norte, então imagine a frustração de uma criança ao procurar os dentões e o bigodão do Leôncio em um leão-marinho desses que aparecem em Cidreira: a criança vê aquela boca mole bocejando, começa a chorar e se traumatiza para sempre.

Um caso semelhante é o da Lula Lelé, que, pelo amor de Deus, não tem nada de lula. Já falei com mais de 10 biólogos, mostrei fotos dos mais variados ângulos da Lula Lelé, e todos me confirmaram que se trata de um polvo. Porque o polvo é que tem a cabeça arredondada, enquanto a lula tem formato de tubo. Aliás, o Lula Molusco, do Bob Esponja, é polvo também. Como podem batizar um personagem que é um bicho com o nome de outro bicho? Ora, francamente.

E tem aquele peixe amigo da Pequena Sereia, o Linguado. Mas da onde que aquilo é um linguado? Vocês já viram um linguado? É um peixe bem feio, tem o corpo achatado, os dois olhos no mesmo lado da cabeça, a cor é marrom como terra, o coitado vive se arrastando no fundo do mar, aí vem a Pequena Sereia e chama de Linguado aquele bobalhão colorido. Ah, me poupem! E poupem nossas crianças de tanta desinformação!

Não estou criticando uma licença artística, como no curioso caso do Pluto e do Pateta, que são personagens da mesma turma, mas, incrivelmente, o primeiro é um cachorro com vida de cachorro e o segundo é um cachorro com vida de humano. Aceito essa incoerência, aceito inclusive que o Pateta namore uma vaca e que o dono do Pluto seja um camundongo, aceito também que o Pato Donald, embora não use calças, continue enrolando toalhas na cintura quando sai do banho, mas jamais aceitaria que o Pato Donald se chamasse Pinto Donald, ou que o Pica-Pau se chamasse Tico-Tico. Simplesmente porque eles não são nem pinto nem tico-tico.

Agora, quando desrespeitam os nomes dos animais marinhos, aí todo mundo aceita. É hora de enfrentar esse absurdo, não é possível que nossas crianças estejam fadadas a jamais diferenciar uma lula de um polvo!

Mas preciso reconhecer que estamos avançando. Depois de demonstrar oportuna preocupação com golden shower, lombadas eletrônicas, caderneta que ensina a usar camisinha, comemoração do golpe nos quartéis e tantas outras urgências do país, talvez nosso presidente se insurja contra os nomes dos animais marinhos nos desenhos animados.

É disso que precisamos.

PAULO GERMANO



30 DE MARÇO DE 2019
LEANDRO KARNAL

Meus garranchos

Sempre tive letra feia. Pior do que apenas feia: infantil, irregular, estranha. Quem lê um manuscrito meu imagina que o autor seja alguém mal ou recém-alfabetizado. Meu pai tinha uma letra regular, bonita, porém de difícil decifração. Minha irmã tem letra professoral redonda. Sou a pior letra da família. Fiz caligrafia e me esforcei bastante. Inútil. Agora que escrevo pouco à mão, minha letra é quase dadaísta.

Por inveja, ressentimento ou genuína admiração, observo pessoas escrevendo com leveza e estética apuradas. Admiro a profissão de calígrafo. Comprei canetas sofisticadas da caligrafia profissional. Ao final, descobri que agora meus garranchos eram mais caros e com instrumentos avançados. Tenho de me conformar: a vida inclui setores não realizados, frustrações e feridas narcísicas.

Quando organizei uma exposição sobre o registro das coisas (A Escrita da Memória), analisei os exercícios de caligrafia de D. Pedro II. Na década de 1830, ele copiava "máximas", frases de escopo moral e de sentido educativo. Há muitos exercícios do jovem herdeiro nos arquivos brasileiros. Depois, transcrevi muitas cartas do monarca já adulto. Aparentemente, a letra imperial nada melhorou com o esforço caligráfico. Pensei comigo: mais um que tentou e não conseguiu...

A letra é um traço de personalidade. Como já disse, estamos escrevendo menos na forma clássica da caneta sobre o papel. Minha assinatura, que nunca foi um projeto arquitetônico de harmonia plena, vive decadência. Tenho extrema dificuldade em reproduzir o modelo que está arquivado no meu banco. Sou um estelionatário de mim mesmo, uma fraude pessoal que tenta imitar cada curva irregular das próprias garatujas. A motricidade fina da escrita é uma fase que devo ter superado sem ter dominado.

Como todo historiador, frequentei muitos arquivos. A paleografia é a arte de decifrar escritas antigas. Se eu der uma carta do século 16 para uma pessoa sem o treino paleográfico, ela terá a sensação de absoluto analfabetismo, mesmo que seja alguém de formação intelectual sofisticada. A carta de Caminha, por exemplo, que tive oportunidade de examinar bem de perto, parece escrita na bela caligrafia árabe, pois tem uma lógica de arabescos harmoniosos.

No Arquivo Geral da Nação no México, analisei processos inquisitoriais quando fazia a pesquisa do doutorado. Lia aquelas letras desenhadas com penas e ficava imaginando a personalidade. Percebia que a mudança de letra em um processo longo também afetava a própria descrição do pecador ou da heresia em questão. Sorria supondo um texto sobre o "secretário na História", a influência daquele que anota sobre o fato.

Conheci alunos do Ensino Fundamental no Primeiro Mundo que não usam mais a alfabetização com papel. O domínio das letras e das sílabas já ocorre direto no computador. Fico imaginando que será uma nova percepção da escrita e, quiçá, um novo tipo de sinapse cerebral.

Será que um dia a yad, a mão de metal com que o jovem judeu lê a Torá e faz sua entrada na comunidade, será um cursor de tela? Haverá um novo ditado: Deus digita certo por arquivos danificados? Que a bela saudação judaica de Ano-Novo: "Que você esteja inscrito no livro da vida" virará "que você tenha seu file salvo até o ano que vem"? Que a correta tradução da expressão árabe "estava escrito (maktub)" virará "estava salvo direto no hardware"? O autor do Apocalipse teve de comer um livro que era doce na boca e amargo no estômago (Apocalipse 10:10). E se fosse um tablet? E se o novo enredo do Nome da Rosa de Umberto Eco envolvesse um computador que soltasse radiação em vez de livros envenenados? E se o Salmo 23 "O senhor é meu Pastor, nada me faltará" virasse "O Senhor é meu provedor de banda larga, ela nunca cairá!".

Há um mundo novo pós-escrita formal sobre papel. Desaparecem os de letra feia ou bonita e emergem os que digitam rápido ou devagar. Beleza cede lugar à destreza. A minha dor da letra feia será um fóssil estranho no mundo da computação. Novas dores surgirão. Em vez de murmurarem "ele tem letra horrível", dirão "ele digita lentamente". Pior, sussurrarão vozes maliciosas, "ele usa emojis equivocados".

Não há mais romances epistolares ou longas notícias escritas à mão. A caligrafia está reduzida a nichos muito específicos. O "calo de estudante", protuberância no dedo fruto da pressão contínua da caneta, deu lugar à tendinite. Como sempre, a nostalgia de alguns será curada pela morte. Quando houver desaparecido a última pessoa que ainda tem noção do que é um mata-borrão, terá se encerrado uma era, como foi a das tábuas de cera romanas e dos cálamos, do papiro egípcio ou do pergaminho da Ásia Menor. O mundo não terminou, apenas mudou. Meu epitáfio não registrará minha dor. E, para sorte de algum futuro turista de cemitério, está lapidado na pedra e não escrito à mão. Ou haverá uma tela interativa no meu túmulo com código QR "escaneável". Quem sabe? É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL


30 DE MARÇO DE 2019
COM A PALAVRA - Entrevista | Marco Feliciano, deputado federal (PODE-SP), 46 anos

"Não há fogo amigo perto de um Bolsonaro. Há um grande incêndio"

Figura proeminente da bancada evangélica da Câmara, Marco Feliciano divide seu tempo entre legislador e pastor na igreja que montou em sua cidade, Orlândia (SP), onde conta com orgulho ter 200 fiéis. Apesar de manter o apoio a Jair Bolsonaro, reclama de falta de diálogo do Planalto com o Congresso e das críticas genéricas do presidente à atividade política. Presidente da Comissão de Direitos Humanos em 2013, ficou conhecido ao sustentar posições atacadas por movimentos de defesa dos direitos LGBT e das mulheres. Refuta os rótulos de homofóbico e defensor da cura gay, atribuídos a ele na época. A exposição fez com que fosse um raro pastor evangélico entrevistado na extinta revista Playboy, o que gerou críticas entre religiosos por se tratar de uma publicação de cunho erótico. Feliciano recebeu ZH em seu gabinete para falar sobre vários aspectos da política nacional, incluindo Eduardo Cunha (ele foi um dos 10 deputados a votarem contra a cassação do ex-presidente da Câmara).

COMO O SENHOR VÊ O INÍCIO DOS TRABALHOS NA CÂMARA, QUE TEVE GRANDE RENOVAÇÃO?

Aposto na melhora do nosso país. Nesse sentido, era preciso esse momento de renovação. Só que, dentro do parlamento, as questões legislativas são muito técnicas. A falta de experiência e a imaturidade podem não ser algo bom - e é exatamente isso que está acontecendo. Estamos com um nível muito baixo de debate na Câmara, todo mundo querendo seus cinco minutos de glória. Mas a gente vai se acertar.

E COMO JUNTAR RENOVAÇÃO E EXPERIÊNCIA?

Só a metade das cadeiras da Câmara foi renovada. A metade que ficou é aquela que a população entendeu como sendo de deputados que trabalham, que não estão metidos em falcatruas. Conosco está a experiência. Agora a gente converge essa experiência dos veteranos com a força dos mais jovens e, assim, vamos encontrar um caminho de paz.

COMO O SENHOR AVALIA O INÍCIO DO GOVERNO DO PRESIDENTE JAIR BOLSONARO?

A gente sabia que não ia ser fácil. Foi um período de mais de 20 anos de hegemonia da esquerda. O pêndulo bateu direto na trave da esquerda e voltou de uma vez para a direita. Agora precisamos trazê-lo para o centro. O governo tem tido um pouco de dificuldade, tentando reinventar a política democrática. A democracia é o governo de todos, com todos, para todos. Quando o presidente resolve montar um ministério no qual ele faz as indicações, está mandando um sinal para a Câmara de que não confia, em princípio, nos partidos. Isso não fica de bom tom. Então, nós temos uma dificuldade muito grande no parlamento. O governo está se estabelecendo, já temos problemas com alguns ministros, que estão na berlinda, mas isso já era esperado. A gente acredita que, em quatro ou cinco meses, tudo se encaixa.

O PLANALTO ERROU NA INDICAÇÃO DO MAJOR VITOR HUGO (PSL-GO), UM LÍDER DE GOVERNO SEM EXPERIÊNCIA PARLAMENTAR?

Eu não diria que errou. O presidente Bolsonaro tem muito boa vontade, mas talvez tenha faltado diálogo. Quando você não conversa com as lideranças, é automático que os líderes queiram chamar a atenção do governo. Como? Isolando aquele que o governo mandou. Isso é só um recado subliminar mostrando que o presidente precisa manter o diálogo conosco. Para se ter uma ideia, sou um dos vice-líderes do governo no Congresso, e, se o líder do governo chegar aqui, eu não conheço ele. Não conheço o Major Vitor Hugo. Então, falta habilidade de conversação.

HÁ FOGO AMIGO DE PESSOAS PRÓXIMAS AO PRESIDENTE?

Muito. Não há fogo amigo, não. Há um grande incêndio. Vejo o (vice-presidente da República) general Mourão sendo extremamente deselegante. Ele, na postura de vice, tinha de ficar na casinha dele, quietinho. Ele não pode fazer o que está fazendo, desdizer o presidente. Isso cria mal estar, inclusive com bancadas temáticas da Casa, como a bancada evangélica.

A INFLUÊNCIA DE OLAVO DE CARVALHO É POSITIVA AO GOVERNO?

O nosso governo, hoje, é diferente de tudo o que já houve. Derrubamos a esquerda no voto. É natural que um governo de direita precise de novos pensadores. O professor Olavo de Carvalho foi de extrema importância para o deputado Jair Bolsonaro. Então, é legítimo o acesso que ele tem ao presidente, porque foi uma das principais referências para ele. Mas não foi a única. Bolsonaro foi eleito por pautas de costume. Isso é consenso. E essa pauta veio com o apoio de dois segmentos da sociedade. O primeiro, formado por evangélicos, cristãos, católicos e religiosos atuantes. O outro, formado pelos que seguem o professor Olavo. E ele tem influência muito grande sobre os católicos no país.

E A INFLUÊNCIA DOS FILHOS DO PRESIDENTE?

Os filhos do presidente... São filhos, né? Eu sou pai, tenho filhos, e, às vezes, quando o filho vê uma coisa, acaba se deslumbrando. Mas são meninos que têm boa intenção. Eduardo Bolsonaro é novo na política, claro, mas é humilde para ouvir. Não tenho acesso aos outros dois (Carlos e Flávio Bolsonaro). Os filhos precisam aprender a construir pontes, e não muros. O presidente tem de governar para todo mundo. Quanto menos falar, quanto menos cair em cascas de banana deixadas pela grande imprensa, melhor.

O PRESIDENTE SE DISTANCIOU DE PROMESSAS E VALORES DEFENDIDOS DURANTE A CAMPANHA?

Não. Bolsonaro permanece. É que ele começa a perceber que uma coisa é você estar em campanha e outra é estar dentro da máquina. Uma coisa é falar "nós temos de transferir a embaixada de Israel para Jerusalém", que é um anseio da população cristã evangélica e católica, é um anseio do mundo livre hoje, quando você está fora da máquina. Outra coisa, completamente diferente, é dizer isso sendo o presidente da República. Você começa a entender que isso pode ter um custo comercial. O presidente não pode andar de salto alto.

A BANCADA EVANGÉLICA RECLAMOU DE DESPRESTÍGIO JUNTO AO GOVERNO. POR QUÊ?

A bancada evangélica não se sentiu desprestigiada. Pelo contrário. O presidente, quando assumiu, mandou nos chamar. Ele pediu alguns nomes para ministérios. Apresentamos alguns, mas os que ele tinha eram melhores do que os nossos. Por isso nem fomos contra. O único problema que acontece com a nossa Frente é o mesmo de todo o parlamento: falta de diálogo. Não é nem com o presidente, mas com os ministros. Como muitos dos ministros não são políticos, não sabem como funciona a Casa, que é um lugar de diálogo. Então, se não criar essa ponte, fica inviável.

ONYX LORENZONI, MINISTRO CHEFE DA CASA CIVIL, É UM BOM INTERLOCUTOR?

Já foi melhor, mas eu acho que agora, por causa dos superpoderes dados a ele e pelo acúmulo de funções, não está conseguindo conversar com todo mundo. Mas ele é uma pessoa de diálogo.

NESTE ANO, O SENHOR PRESTOU HOMENAGEM AO EX-DEPUTADO CLODOVIL. QUAL FOI A MOTIVAÇÃO?

Clodovil é um símbolo, ou deveria ser. Eu lutei aqui, dentro da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, para incluir todas as minorias, inclusive as minorias das minorias, quando fui presidente, em 2013. Na comissão, fui acusado de ser homofóbico, e eu sempre questionei as pessoas que me acusaram sobre o que é a homofobia. Porque até hoje ninguém encontrou um consenso sobre a questão. Sou contra qualquer tipo de discriminação e violência, seja por sexo, cor, religião, o que for. Respondi mais de oito processos no Supremo Tribunal Federal (STF), e todos foram arquivados, porque esse crime não existe. Se existisse, possivelmente eu teria sido cassado simplesmente por dizer que eu não acho certo dois homens darem um beijo no meio da rua perto de crianças. Isso é ser preconceituoso, homofóbico? E a minha liberdade de consciência? Fiz a homenagem ao Clodovil porque foi o primeiro homossexual assumido a ter um cargo na Câmara dos Deputados. Foi deputado, um homem de bem, um homem de família, que sofreu preconceito porque era minoria da minoria. Ele era um homossexual que não tinha orgulho de ser. Ele dizia: "Eu tenho orgulho de ser humano, a minha orientação sexual é foro íntimo meu".

EM 2013, O SENHOR FOI ACUSADO DE INCENTIVAR A CURA GAY. QUAL É SUA OPINIÃO SOBRE A ATUAÇÃO DE PSICÓLOGOS NESSE TEMA?

(Risos) Tenho que rir. Desculpa, não é deboche, não. É que nunca houve cura para aquilo que não é doença. E eu sempre deixei isso muito claro. Isso é um rótulo criado pelo próprio movimento LGBT, apadrinhado pela grande imprensa de esquerda. O que havia era um projeto do PSDB, um partido de esquerda, que sustava uma resolução do Conselho de Psicologia Federal, que é o único do mundo que cerceia o direito do profissional de saúde mental de tratar uma pessoa que busca ajuda por ter uma crise existencial, uma crise interior.

O SENHOR TEVE UM SOLDADO NA COMISSÃO, QUE FOI O ENTÃO DEPUTADO FEDERAL JAIR BOLSONARO. DE ALGUM MODO, O SENHOR SE CONSIDERA RESPONSÁVEL PELO CRESCIMENTO DELE?

Responsável, não. Acho que foi uma questão de oportunidade. Bolsonaro sempre foi um parlamentar polêmico. Nunca foi de um grupo, era um político isolado na Casa. Só que, em questões de costumes e de moral, ele sempre foi muito incisivo. Quando me viu sofrendo na comissão, porque eu sofri muito, ele esteve do meu lado. Ele é muito inteligente. Talvez tenha percebido algo que eu não tinha percebido: que aquilo poderia ser um mote de mudança de conceitos da sociedade. Ele começou a falar, naquele momento, o que a população queria ouvir. Quando o povo começa a perceber que o Estado está interferindo na educação do seu filho, quem é inteligente fala: "Calma aí". Foi nesse momento que ele de fato acabou crescendo. Acredito que ajudei nessa ascensão, naquele instante. Foi ali que nasceu o mito. Ele deixou de ser o bufão para se tornar o mito do parlamento.

QUAL É A SUA OPINIÃO SOBRE O ABORTO EM CASOS JÁ PREVISTOS EM LEI, COMO ESTUPRO E FETOS ANENCÉFALOS?

Como brasileiro e legislador, eu sigo a lei. Só que minha consciência, como ser humano, como pastor e mais ainda como sobrevivente de um aborto... Eu sou contra o aborto em qualquer esfera, a não ser que a vida da mãe esteja em risco. É uma vida que não tem como se defender. Respeito o que está na lei, em caso de estupro. Todavia, se eu pudesse conversar com a moça estuprada, diria que o que está dentro dela é uma vida. A mulher foi estuprada hoje, ela sabe que, se for a um médico agora, procurar ajuda, tem a pílula do dia seguinte. Não há concepção. Então, evitaria um aborto.

EVANGÉLICOS COSTUMAM CITAR COM FREQUÊNCIA A EXPRESSÃO FAMÍLIA TRADICIONAL. QUAL, AFINAL, É ESSE CONCEITO?

A família tradicional é a família civilizatória. Homem, mulher e filhos. Reconheço que, hoje, existem arranjos familiares. Fui criado a partir de um arranjo familiar, em uma casa na qual só havia a minha mãe. Há legitimidade nessas famílias. Mas a família tradicional tem de ser protegida. Se ela não for, não existe família no amanhã. A nossa briga é a seguinte: quando se faz um projeto de lei, um desses projetos polêmicos, você não pode criá-lo partindo da exceção para a regra. É o contrário disso. Você deve partir da regra para a exceção.

QUAL É A INFLUÊNCIA DAS IGREJAS EVANGÉLICAS NAS ELEIÇÕES? É NORMAL PEDIR VOTOS EM CULTOS?

Sou, talvez, um dos poucos deputados da ala evangélica que vem para o parlamento sem apoio institucional de nenhuma igreja. As instituições têm organizações próprias e acabam elegendo alguém do meio delas para que seja o representante. Por exemplo: a Assembleia de Deus Madureira se reúne na sua convenção e diz: "Nós vamos ter tantos candidatos, um em cada Estado, e esse é o candidato oficial da nossa igreja". Assim fazem a Universal, a Assembleia de Deus Missão, a Quadrangular, o RR Soares (Igreja Internacional da Graça de Deus). Embora eu seja da Assembleia de Deus, a igreja não me apoia institucionalmente. Culto não pode ser usado para pedir voto. O altar é sagrado. Existe momento e hora para isso. Nunca falei sobre política no culto. O que é feito na rua é outra coisa. Da calçada para fora, se quiser distribuir um profetinha - eu não chamo de santinho, porque santo só Deus -, tudo bem. Feito lá fora, tudo bem.

O SENHOR COM FREQUÊNCIA DEMONSTRA INSATISFAÇÃO QUANTO À FORMA COMO OS CIDADÃOS EVANGÉLICOS SÃO REPRESENTADOS NA MÍDIA. POR QUÊ?

Sempre que aparece em programas de entretenimento ou em novelas, o evangélico é colocado como louco, lunático, maluco, desequilibrado, como um fanático religioso. E os evangélicos não são assim. Não todos. Você não pode generalizar. Parece que é feito de propósito para descaracterizar o evangélico ou nos colocar diante da sociedade como párias. É desonroso ver uma TV como a Globo, que é tão poderosa, tentar humilhar os evangélicos. Uma emissora, embora tenha autonomia, tem concessão pública. Não pode usar seu poder para atacar um povo que não faz nada de mais a não ser orar. Evangélico não fuma, não bebe, não mata, não rouba, e, quando isso acontece, é punido. Quero só respeito conosco.

O SENHOR JÁ CLASSIFICOU O DEPUTADO CASSADO EDUARDO CUNHA COMO HERÓI POR TER DERRUBADO O PT. COMO O SENHOR VÊ O DEPUTADO CASSADO HOJE?

Eduardo está pagando pelo crime que cometeu. Gosto dele como pessoa. Não volto atrás daquilo que falo. Eduardo deu ao Brasil um presente. No futuro, a história vai dizer. Foi Eduardo quem derrubou o PT, não foi o parlamento. Porque todo mundo sabe que não havia peito aqui dentro para derrubar o PT. Não vou entrar no mérito do porquê, mas foi ele quem fez. O aborto só não se tornou lei até a 12ª semana porque o Eduardo segurou aqui, como cristão que era. O Plano Nacional de Educação, que foi votado aqui, estava cheio do que nós chamamos de ideologia de gênero. Iriam transformar nossas escolas em pontos de reconstrução da sociedade. Então, não é porque você fez 99 coisas boas e uma errada que vou te crucificar para sempre. Oro pela vida do Eduardo, faço votos que pague pelos crimes e termine com isso. Vou ter por ele sempre essa visão. Para mim, o Brasil ainda não teve um político tão preparado intelectualmente como Eduardo Cunha.

COMO ESTÁ A ATUAÇÃO DO STF ATUALMENTE E SUA RELAÇÃO COM O CONGRESSO NACIONAL?

Muitas pessoas acabam espancando o Supremo, mas porque não conhecem a realidade política. A covardia da Câmara em alguns assuntos faz com que o STF cresça. Esse poder que ascende, no caso o Supremo, deveria ter a hombridade de não extrapolar sua esfera de atuação. Infelizmente, o Supremo tem atravessado as linhas imaginárias que separam os poderes. Um exemplo: o casamento homossexual. A Constituição diz uma coisa, o Supremo diz outra. Então, se você rasga um artigo, a Constituição inteira está sob risco. O que tinha de acontecer era desligar a TV Justiça. Copiar os países de primeiro mundo, democracias maduras. Os Estados Unidos não têm televisão em cima da Justiça. Não podemos ter o espetáculo do julgamento.

O SENHOR DEFENDE UMA CPI PARA INVESTIGAR O JUDICIÁRIO, NOS MOLDES DA RECÉM-ARQUIVADA LAVA-TOGA?

Defendo qualquer CPI. A maioria dos deputados tem dificuldade em assinar CPI por causa de acordos. Nunca retirei assinatura de uma CPI. Esta Casa existe para isso. Se há uma denúncia, vamos investigar. Quem não deve não teme.

QUAIS SÃO SEUS PLANOS FUTUROS NA POLÍTICA? SONHA COM A PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA?

Sou um parlamentar, fui eleito pelo povo. Estou aqui no meu terceiro mandato, participei de uma eleição atípica. Achei que não ia conseguir e vim ungido por quase 250 mil votos. Eu quero continuar servindo o povo, da melhor maneira possível. Quero um país mais justo - isso não é só discurso de esquerda. Sou novo, tenho 46 anos. Sonho um dia poder governar o nosso país. O IBGE diz que, em 10 anos, o Brasil será um país majoritariamente evangélico. Dos evangélicos aqui da casa, eu não sou o maior, nem o melhor, mas acho que sou um dos mais atuantes. O povo tem respeito por mim. Quando o justo governa, o povo se alegra. Não que eu seja mais justo que os outros, mas essa justiça está atrelada àquele que tem uma fé viva em um Deus vivo. E tenho uma fé viva em um Deus vivo.

MATEUS FERRAZ


30 DE MARÇO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

NARGUILÉ

Médicos americanos alertam: equipamento de fumo altera, no curto prazo, a frequência cardíaca e o controle da pressão arterial
Mês passado estive no Líbano. A convite da agência Uzumaki e do UOL, fui gravar um documentário sobre o trabalho de Médicos Sem Fronteiras com os refugiados sírios, experiência inesquecível.

Fiquei impressionado com a prevalência quase universal do fumo e com o uso disseminado do narguilé entre homens e mulheres, responsável pela névoa densa que toma conta dos bares e restaurantes do Líbano inteiro. A preocupação com os fumantes passivos ainda não chegou àquela parte do mundo.

Na maioria dos restaurantes, o equipamento para fumar o narguilé é levado à mesa do usuário por garçons jovens encarregados de acendê-lo. A operação é realizada introduzindo um dispositivo na embocadura da saída da fumaça, para aspirá-la com força três ou quatro vezes, antes de entregá-lo ao cliente. A nuvem de fumaça exalada depois de cada tragada é impressionante. Fazem tudo rapidamente, porque há usuários impacientes à espera,

Nos restaurantes maiores, os rapazes devem repetir a operação 40, 50 vezes, num turno de trabalho. Com pouco mais de 20 anos, eles têm as maçãs do rosto e os lábios arroxeados dos fumantes de cigarros intoxicados pelo monóxido de carbono, e com a capacidade respiratória comprometida pela doença pulmonar obstrutivo-crônica.

A American Heart Association (AHA) acaba de publicar um boletim no qual reconhece que o narguilé é usado por milhões de pessoas no mundo. Considera que a adição de sabores de balas e frutas ao tabaco e o ambiente das redes sociais criaram um cenário favorável à disseminação entre os adolescentes e ao conceito falso de que o compartimento com água pelo qual circula a fumaça aspirada retém o material particulado associado aos principais malefícios do cigarro.

Outro pensamento mágico é o de que o narguilé não causaria dependência química, como se a fumaça inalada não contivesse nicotina, a mais aditiva das drogas conhecidas.

Segundo a AHA: "Acumulam-se evidências de que o narguilé altera, no curto prazo, a frequência cardíaca, o controle da pressão arterial, a oxigenação dos tecidos e a função vascular. O uso prolongado aumenta o risco de doença coronariana. Diversas substâncias nocivas (ou potencialmente nocivas) encontradas na fumaça do cigarro, também estão presentes no narguilé, frequentemente em níveis até mais altos".

Uma metanálise conduzida em quatro países mostrou que o fumante que usa o narguilé uma vez por dia tem níveis urinários médios de cotinina (um metabólito da nicotina) de 0,783 mg/mL, os mesmos liberados por 10 cigarros.

A sessão típica de narguilé dura uma hora, na qual o fumante dá cem tragadas, em média. A quantidade de nicotina fumada é equivalente à de dois cigarros por dia, durante quatro dias. O fumante fica exposto a concentrações de monóxido de carbono 35 vezes mais altas do que as de um cigarro. É liberada no ambiente a quantidade de monóxido correspondente à de 10 pessoas fumando cigarro, ao mesmo tempo.

DRAUZIO VARELLA

30 DE MARÇO DE 2019
PAULO GLEICH


DESEJO DE SER GRANDE

Em visita recente de uma amiga, observamos divertidos ao novo hábito de seu filho pequeno: caminhar usando os calçados dos adultos. Todos tivemos nossos sapatos calçados por ele, que exibia uma alegria ímpar andando naqueles artefatos que, em seus pequenos pés, mais pareciam canoas. Mal aprendeu a caminhar, e já estava insatisfeito com seus minitênis: queria usar sapatos de adulto!

O que ele nos mostrou ali, mais do que uma cena repleta de fofura, é um motor fundamental para o crescimento das crianças: o desejo de ser grande. Freud, que não atendia crianças - mas teve muitos filhos e netos -, reconheceu a importância decisiva desse desejo para que novas conquistas fossem alcançadas. Isso mesmo quando, como no caso do filho da minha amiga, usar sapatos grandes ainda é um horizonte muito distante.

Todos que têm filhos ou convivem com crianças têm vários exemplos de como esse desejo se expressa. A criança um dia aparece usando roupas e sapatos dos pais, ou imita ao telefone as palavras e gestos de um adulto discutindo questões de trabalho. As próprias brincadeiras infantis são, com frequência, expressão desse desejo: tornam-se pais e mães de seus bonecos, enfrentam destemidos desafios e perigos fantásticos.

Esse desejo - como todo desejo - às vezes claudica. Em algumas situações, como a chegada de um novo irmão, o medo de perder o amor dos pais pode levar uma criança a voltar a se apresentar como bebê. Também pode acontecer após a conquista de um novo passo rumo à autonomia, que às vezes traz consigo temor da solidão e do desamparo. No mais das vezes, essas situações são passageiras e acabam se revertendo com o tempo; são apenas pequenos tropeços em seus avanços.

A ausência ou inibição contínua desse desejo de crescer, porém, é sintoma de que algo pode não estar bem. Uma criança excessivamente apegada à sua condição infantil, incapaz de manifestar insatisfação com o que seus limites lhe impõem, mostra que o medo de crescer superou seu desejo, e que o único que lhe cabe é resignar-se a ocupar sua condição. As aquisições motoras, de linguagem, entre outras, se veem afetadas por esse impasse: é preciso alguma ousadia para crescer.

Com frequência, essa ausência de desejo de ser grande denuncia um medo muito intenso dos pais em relação ao crescimento e à autonomia do filho. Mesmo que queiram que ele cresça, muitas vezes também temem pelo que isso implica para eles: cada vez terão menos controle sobre seu filho, este será pouco a pouco um sujeito mais independente de seus anseios e vontades. Cada passo no crescimento dos filhos implica também uma perda para os pais, e para alguns isso é motivo de grande angústia.

Pais superprotetores, ciosos de cada passo de seu filho, transmitem uma mensagem inconsciente que pode inibir seu crescimento. Ao precisarem estar tão presentes e fazer tanto por ele, afirmam também que não têm confiança em sua capacidade de fazê-lo sozinho. O excesso de proteção acaba tendo como efeito o contrário de sua intenção: deixa o filho desprotegido frente a desafios que, cedo ou tarde, terá de enfrentar com as próprias pernas.

Assim como quedas e tropeços fazem parte de aprender a caminhar, todo avanço se encontra com dores e barreiras. Quanto antes se fizer essa experiência, melhor se poderá lidar com os inevitáveis obstáculos da caminhada da vida - para a qual jamais se está suficientemente grande.

PAULO GLEICH


30 DE MARÇO DE 2019
JJ CAMARGO

O AFETO ESTÁ NOS PEQUENOS DETALHES

A autorização para usar celular na UTI significa muito mais do que os requintes técnicos do tomógrafo
Mesmo os eternamente peregrinos, com alta rotatividade de aposentos ocasionais, aprendem a valorizar a funcionalidade dos ambientes e reconhecem que voltar para casa, ou encontrar um lugar que ao menos lembre o canto que cada um chama de seu, é, com alguma frequência, o melhor momento de uma viagem cheia de bons momentos.

Se isso é assim na saúde e felicidade, imagine-se o grau de dependência do afeto ambiental, de quem se sente pra baixo porque adoeceu. Os melhores hospitais do mundo, historicamente, se limitavam a albergar os pacientes em condições hoteleiras satisfatórias, a oferecer tecnologia de ponta para assegurar todas as facilidades diagnósticas e a garantir que nada faltasse da terapêutica determinada pelo corpo clínico-cirúrgico mais especializado.

Teoricamente, isso era a tudo o que se podia conceber para que a melhor medicina fosse oferecida aos seus privilegiados pacientes. Entretanto, como o nível de satisfação da clientela nunca se aproximava do pretendido, começaram os questionários em busca do hospital ideal, o que, como era de se esperar, abriu a porta aos queixosos.

Nessa altura, houve o claro entendimento de que, antes de tratar as doenças das pessoas, temos que cuidar das pessoas que adoeceram. E, para essas criaturas, fragilizadas, um ambiente com luz natural, uma cor alegre nas paredes do quarto, a disponibilidade de um sistema de som que lhes permita ouvir as suas músicas, um terminal para uso do laptop ou a autorização para usar o celular na UTI significam muito mais do que a modernidade dos monitores ou os requintes técnicos do tomógrafo de última geração. E por quê? Porque uma coisa é o que existe para o resto do mundo, e outra, o que percebemos como nosso. Ou seja, a tecnologia pode tornar o hospital mais famoso, mas não diminui a solidão, e isso é o que o sentimos.

As pequenas coisas, essas que nos dão prazer, representam um patrimônio pessoal que festejamos por conservar, ou lamentamos por perder. A conexão com o mundo virtual servirá, ao menos, para preservar a sanidade emocional ameaçada pela perigosa junção de medo e solidão. Sentir-se vivo está diretamente condicionado a estar conectado ao mundo exterior, através de todos os instrumentos sensoriais.

A quebra dessas conexões amplia a distância entre a saúde e a doença e, no mínimo, retarda a recuperação. Quando perguntei ao Raul como tinha sido sua passagem por uma das melhores UTIs do mundo, onde lhe restauraram a vida depois de um procedimento de altíssimo risco, ele foi sucinto:

- Não tinha wi-fi!

Impressiona a variedade de exigências de quem está consumido pelo medo da morte, e, com todos os sensores ligados, nada lhes escapa da avaliação crítica, e tudo é importante, indispensável e intransferível.

Quem não entende isso devia evitar a proximidade com pessoas doentes. Essas criaturas fazem exigências que os saudáveis impacientes consideram fúteis. Porque simplesmente não aprenderam ainda que, quando nos sentimos diminuídos pela doença, qualquer perda adicional, não importa o tamanho, parecerá insuportável. E ninguém sente a dor que dói no outro.

JJ CAMARGO


30 DE MARÇO DE 2019
DAVID COIMBRA

O super-herói que come donuts todos os dias

O Batman come Dunkin? Donuts todos os dias. Dunkin? Donuts é uma franquia de café que vende uma espécie de sonho pequeno, pouco maior do que um botão puxador de três camadas. É barato, custa um dólar. Eles se instalaram em Porto Alegre, tempos atrás, mas, após alguns anos, saíram da cidade para nunca mais voltar. O Dunkin? é daqui, de Massachusetts, assim como o Batman. Ou, pelo menos, como o ator que interpreta o Batman, o Ben Affleck.

Ben Affleck diz que o fato de comer Dunkin? Donuts todos os dias o faz se sentir mais próximo de Boston, embora agora esteja vivendo na Califórnia. Ou seja: o Dunkin? Donuts tem um valor sentimental para ele. Quando Batman dá uma dentada num donuts e o recheio se lhe escorre pelos dentes, certamente ele sente o gosto da infância.

Foi o que me capturou ao ler a notícia: o sabor da infância. Eu, quando pequeno, havia uma comida que dizia poder comer todos os dias: batata frita. Minha mãe não fazia batata frita com frequência, porque precisava usar grande quantidade de azeite na fritura, e o azeite era caro. Então, os dias em que ela botava um prato de batatas fritas na nossa frente eram especiais. Eram umas batatinhas gordas, crocantes por fora e macias por dentro. Eu e meus irmãos as partilhávamos como se fossem moedas: uma pra mim, uma pra ti, uma pra ti; duas pra mim, duas pra ti, duas pra ti. Era contadinha, a divisão. Um dia afirmei:

- Eu comeria batata frita todos os dias!

Minha irmã apertou os lábios:

- Ninguém come batata frita todos os dias. É muito caro!

Tive de concordar. Ninguém seria perdulário de fazer tamanho gasto todos os dias.

Outra comida pela qual tínhamos fetiche era o camarão, esse, sim, muitíssimo mais caro do que a batata frita. Dia de camarão era dia de festa. Mas comíamos com certo respeito, porque, no passado, ocorrera um terrível incidente na família envolvendo o camarão. É que meu avô havia contraído tifo numa época em que isso era sentença de morte. Ele, porém, se recuperou, e a minha avó, para comemorar, fez arroz com camarão. Minha avó era a melhor cozinheira da cidade. Meu avô gostou tanto, comeu tanto daquele arroz com camarão, que teve uma recaída. Em sua segunda recuperação, minha avó serviu uma inócua canja de galinha.

Ah, e agora chego à terceira comida que marcou minha infância: o frango assado, chamado "frango de televisão de cachorro". É aquele frango dourado, cheiroso, luminoso, acompanhado de polenta, que fica rodando no espeto. Aos domingos, quando íamos almoçar na casa do meu avô, minha mãe dizia para mim e para meus irmãos:

- Caminhem olhando para o chão. Se acharmos cinco cruzeiros, vamos comprar frango assado.

Nunca achamos.

Hoje, era para eu ser um adepto de frangos assados, mas não sou. O frango assado não me faz sentir o gosto da infância, nem o camarão e nem a batata frita. A infância, para mim, ressurge? quando corto uma fatia de pão. É estranhamente trivial, mas é isso mesmo. Quando tomo o pão com a mão esquerda e, com a direita, assesto a faca serrilhada para cortá-lo, lembro-me da minha mãe mandando:

- Vai lá na vendinha e traz meio quilo de pão semolina e um litro de leite.

Ela queria preparar o café da tarde. Eu, então, deixava a contragosto a brincadeira da qual estivesse me ocupando e ia. No caminho, encontrava um amigo ou dois e me detinha conversando. Houve dias, vários, em que deixei o pão e o leite em cima de uma pedra e entrei na peladinha que era disputada no areão ao lado da venda. E não raro fiz um pequeno desvio para me pôr debaixo da janela de Sândi, a loirinha de olhos azuis que morava no térreo do prédio do meu amigo Amilton Cavalo. Jogava uma pedrinha no vidro da janela, ela aparecia sorridente e eu:

- Oi, gatchinha?

Quando chegava em casa, sempre levava um xingão da mãe, por causa do atraso. Não me importava, estava feliz. Aí, a mãe botava o leite para ferver e fatiava o pão, exatamente como faço agora e, agora, é dela que me lembro e dos meus antigos amigos e da loirinha Sândi e de tardes vadias no IAPI, o bairro da minha infância, como é doce o gosto da infância.

DAVID COIMBRA

30 DE MARÇO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

O PAPEL DO JUDICIÁRIO


Numa democracia baseada no equilíbrio entre os poderes, é preciso zelar permanentemente para que nenhum deles se sobreponha aos demais

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), José Dias Toffoli, tem razão ao defender a simplificação da legislação e da Constituição para que haja uma redução de ações judiciais, evitando sobrecarga na mais alta corte de Justiça do país. Como afirmou em seminário na sexta-feira, o fato de tantos assuntos discutidos na sociedade estarem indo parar no STF significa o "fracasso" das demais instituições. O caso mais recente de judicialização é o da carga tributária no frete. Esse é um dos tantos exemplos típicos do que poderia ter sido evitado com mais simplificação legal e menos emendas constitucionais.

O país enfrenta hoje um momento particularmente tenso, em que os chefes do Executivo e do Legislativo anunciam uma trégua para baixar o tom de animosidades. Mais do que nunca, o Brasil precisa de um Judiciário equilibrado e blindado contra os efeitos de bate-bocas e de picuinhas envolvendo alguns dos principais atores políticos.

Nessas situações, cabe ao Judiciário, mais especificamente ao STF, servir como ponto de racionalidade e como garantidor do cumprimento das leis. É o que tem ocorrido, felizmente, quando a instabilidade surge no horizonte, ameaçando até mesmo o andamento de reformas fundamentais para o futuro do país.

Numa democracia baseada no equilíbrio entre os poderes, é preciso zelar permanentemente para que nenhum deles se sobreponha aos demais. Ainda assim, o papel do Judiciário, particularmente do STF, costuma crescer nos momentos de maior tensão política, como tem sido frequente nesses primeiros três meses de governo Jair Bolsonaro. Uma de suas atribuições é justamente dirimir impasses, além de julgar a constitucionalidade das leis e interpretar dispositivos da Constituição que não são claros.

O país só tem a ganhar quando o Judiciário deixa de lado a ênfase em questões meramente de ordem salarial e corporativistas e, sem se sobrepor à autonomia dos demais poderes, age para fazer valer a Constituição. Foi o que se constatou, na história recente, quando o Brasil passou por dois processos de impeachment presidencial e pela prisão de dois ex-presidentes da República.

Por isso, é importante que tanto o Executivo quanto o Legislativo se mostrem atentos ao apelo do presidente do STF no sentido de evitar uma sobrecarga ainda maior para a Constituição. Quanto mais leis e emendas constitucionais, maior fica a margem para judicialização. E, em consequência, mais se ampliam as demandas nas cortes superiores.



30 DE MARÇO DE 2019

INDICADORES



Onde vai morar o seu dinheiro


Em apenas uma semana, vi três usos diferentes do dinheiro: estava em Boston quando li que a comunidade da Filadélfia quer uma lei que obrigue as lojas a aceitar dinheiro, pois só aceitam cartão de crédito. Em SP, fiz um curso de e-commerce com os chineses do Alibaba (maior empresa de vendas online do mundo). A China pulou do dinheiro, direto para pagamentos digitais, sem passar pelo cartão de crédito. Em POA, me surpreendo com um amigo pagando uma conta com cheque!

Me lembrei de quando estudei no Japão, há 30 anos, ninguém usava cheque. A morte do cheque, do dinheiro em papel e do cartão está próxima. Todos substituídos por pagamentos digitais. A corrupção vai sofrer mais um golpe. Não vai dar mais para guardar dinheiro em apartamentos ou malas, como faz a turma do Temer. Não vai dar para assaltar bancos, caixas eletrônicos, lojas, postos de gasolina, motoristas de táxi. A desmaterialização do dinheiro avança. Mesmo para aqueles que não têm conta em bancos, os "desbancarizados". Não precisam mais ter conta em banco para ter acesso ao sistema financeiro. Tudo está mudando: quem processa o pagamento, como fazemos o pagamento e a moeda utilizada.

É muito caro lidar com o dinheiro físico (segurança, transporte, onde armazenar, manuseio, transferências). Plataformas digitais, como Google, Facebook e WeChat (uma mistura chinesa de Face, Google, WhatApp, banco digital, IFoods), estão virando agentes financeiros e vão desafiar os bancos. Débito em conta ou cartão de crédito vão ser substituídos por autorizações biométricas (comando de voz ou reconhecimento facial, que lê o rosto e transfere para a loja onde a pessoa está). Ou pré-autorização de pagamento, como fazemos quando usamos o Uber. Na Dinamarca já se paga com o dedo! As lojas AmazonGo registram a entrada do cliente pelo celular, ele pega o que quiser, sem passar no caixa. Já pagamos contas cedendo nossos dados ou usando pontos em programas de fidelidade. Com as criptomoedas, como o bitcoin, a digitalização de pagamentos vai aumentar. São suficientemente transparentes e confiáveis?

A situação dos meios de pagamento vai mudar ainda mais, com a Economia Colaborativa (onde a moeda é a permuta), o ApplePay, o Pila (carteira digital que vai ser lançada segunda-feira em Passo Fundo), o MaxMilhas (onde se compra e vende milhas para comprar passagens) e as milhares de fintechs (empresas de tecnologia, focadas em finanças), que fazem tudo sem dinheiro. Muitas novas opções para decidirmos quem vai cuidar do nosso dinheiro.

Alfredo Fedrizzi escreve aos fins de semana, a cada 15 dias - ALFREDO FEDRIZZI

sexta-feira, 29 de março de 2019



A propósito... 

É isso. Nada da velha piada nova-iorquina na qual um yuppie fala para o outro: diz para tua secretária eletrônica ligar para minha para marcarmos um encontro. Tecnologia, sim, mas para comunicar e não para isolar. Olhar para o entardecer e para a lua na real, acredite, é mais bonito do que na tela do celu ou do tablet. O céu estrelado de noite é melhor para a saúde do que a telinha luminosa no escuro do quarto, atrapalhando o sono. 

Quem não se comunica, se trumbica, decretou o Velho Guerreiro. E quem sabe faz ao vivo, disse o outro. Abraços, beijos, apertos de mão e outros afetos presenciais são indispensáveis. Falando em virtual, tomara que o Inter seja o virtual campeão, na real. (Jaime Cimenti) 

Lançamentos 

Na direção das setas amarelas - A busca de si mesmo no Caminho de Santiago de Compostela (BesouroBox, 240 páginas, R$ 49,90), de Leandro Haach, graduado em Letras, pós-graduado em gestão de pessoas e Mestre em Administração, narra a bela e longa peregrinação de 800 quilômetros a partir do ponto zero do Caminho francês. O Teatro do Absurdo - Becket, Ionesco, Pinter, Genet e outros (Editora Zahar, 424 páginas) de Martin Esslin (1918-2002), um dos mais importantes críticos teatrais do século XX, apresenta principais dramaturgos, peças, origens e contexto de um dos marcos fundamentais na história do teatro. Bíblia Sagrada Verdadeira Identidade: para a mulher de hoje (Sociedade Bíblica do Brasil, 1984 páginas, R$ 125,90, capa em couro sintético) é destinada à mulher moderna, destacando ideias e experiências com Deus de uma maneira artística. 

Mostra situações enfrentadas pelas mulheres ao longo da vida, como trabalho, carreira, namoro, filhos, casamento, mudanças e amizade. - 

Jornal do Comércio (https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2019/03/676353-thriller-psicologico-chocante.html


Jaime Cimenti 

Thriller psicológico chocante 

O bom filho (Editora Todavia-TAG-Inéditos, 288 páginas), romance de You-Jeong Jeong escrito no sistema hangul e traduzido do coreano por Jae Hyung Woo, que nasceu na Coreia em 1976 e vive no Brasil desde 1989, contou com o apoio do Instituto de Tradução de Literatura da Coreia (LTI Korea). 

A obra é um thriller chocante que envolve morte, mistérios da mente e da memória, violência e histórias familiares. Como se vê, um coquetel com altas doses de glicerina pura. You-jeon Jeong nasceu na Coreia do Sul em 1966, publicou quatro romances que já venderam mais de um milhão de cópias e teve dois adaptados para o cinema: Shoot me in the heart (Prêmio Segye Literature Award) e Seven year of darkness, considerado um dos 10 melhores romances policiais pelo jornal alemão Die Zeit. 

O bom filho é sua estreia no Brasil. A narrativa começa com um telefonema do irmão de Yu-jin pela manhã, perguntando se está tudo bem. Yu-jin acorda sentindo um estranho cheiro metálico e ao descer as escadas do elegante duplex onde morava com a mãe na Coreia do Sul, a encontra morta, deitada sobre uma poça de sangue. Yu-jin não lembra muito da noite anterior, mas tem a leve recordação da mãe chamando pelo seu nome. Pedia ajuda? Implorava por sua vida? 

Este é o início da busca frenética e incessante para desvendar o crime. Yu-jin descobre segredos sobre si e sobre sua família, composta por pai, mãe, tia (irmã da mãe), um irmão biológico e um irmão adotado. A escritora inspirou--se num caso que chocou seu país: após uma viagem a Los Angeles, onde contraiu enormes dívidas, um jovem entrou em discussão com os pais e os esfaqueou até a morte. 

Quando foi preso, mentiu sobre o acontecimento. You-jeong Jeong se questionou sobre o fato e escreveu O bom filho. Os brasileiros vão constatar que, não por acaso, a escritora é expoente em seu país e é comparada frequentemente ao norte-americano Stephen King, autor de thrillers mundialmente famosos. Antes de ser escritora, You-Jeong cursou Enfermagem. Já na faculdade, se interessou por psicologia e psiquiatria e trabalhou em UTIs e prontos-socorros. 

Tecladictos 

Confesso humilde e loucamente que tenho mais de quatro mil amigos no Face, que não consegui ler milhares de e-mails nos últimos tempos, que faço parte de não sei quantos grupos de Whats, que estou no Linkedin, no Instagram, no Messenger e mais não onde e estou com dezenas de aplicativos no iphone que parece uma extensão da mão e da mente e é uma espécie de irmão xifópago que está comigo dia e noite. Estou mais conectado que ouvido de sacoleira fofoqueira ou tubo em conexão Tigre com um monte de Super Bonder. 

Cuidado que isso é fake, não se usa Super Bonder em tubos... Me disse agora o balconista da ferragem para onde acabei de ligar. Melhor não escrever ou trabalhar com o celular perto, porque aí fico dispersivo e posso acabar dispersando vocês, queridos oito leitores, a quem peço, inutilmente, que fiquem longe do celular durante os minutos que utilizarão (ou não) para lerem esses linhas sobre a tecladicção que nos pegou. Não sou contra a inevitável tecnologia, mas a favor da conversação e das relações humanas sem tanta intermediação eletrônica. Até os oito anos não tínhamos TV em casa. 

Eu era televizinho. Fui na casa de amigos na serra gaúcha e, acreditem! Nada de TV na sala, só aparelho de som emanando um maravilhoso jazz tornando o ambiente ainda mais aconchegante. Sherry Turkle, autora de Alone Together (2011), professora de Psicologia Social do MIT e estudiosa das influências digitais no comportamento, negociou com a filha: nada de celular ou tablet na cozinha, na mesa de refeições e no carro, espaços familiares. 

Conseguiu? Algumas famílias norte-americanas colocaram os computadores numa mesa na sala, para aproximar os familiares. É o "cocooning", encasulamento. 
Precisamos administrar a nomofobia (no-mobile-phone phobia), o medo ou preocupação de ficar sem celular ou sem poder usá-lo e ficar de olho nos efeitos do excesso de tecnologia, ruídos, palavras e informações.

 Há uns trinta anos atrás se pensava em não ler jornais, revistas e livros demais. Agora a oferta de informação eletrônica com essa velocidade leporina turbinada, traz exageros e problemas. Há oito anos, a Maria, 60 anos, faxineira da minha mãe, cantou a pedra: Jaime, larga o celular e conversa mais com a gente. 

Os efeitos do celular no cérebro, no sono e na saúde em geral já são conhecidos e os alertas estão aí, inclusive e principalmente nos meios eletrônicos. A forma de comunicação eletrônica em si não é boa ou ruim e deve ser utilizada também para mostrar os próprios excessos. 

Só curtir a nostalgia da vida sem tantas conexões e tecnoadicções é simpático, mas é pouco. Precisamos evitar isso de estar sozinho em meio a milhões ou de ter contato com tantos desconhecidos íntimos ou perfeitos desconhecidos. 

Celu para baladas pode ser prejudicial. Um amigo estava numa festa com o celu da mulher no bolso, na beira da piscina, aí uma pessoa se encostou e ele caiu. A mulher deixou o telefone mergulhado no arroz por três dias. Não adiantou. Preju de quatro mil e bronca. - 

Jornal do Comércio (https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2019/03/676353-thriller-psicologico-chocante.html)