09 DE JULHO DE 2018
DAVID COIMBRA
A MADRUGADA DA DERROTA
Passava um nada das três horas da madrugada quando chegamos ao nosso hotel, na noite da derrota do Brasil. O trabalho havia sido duro, o final havia sido triste e nós estávamos com fome. A noite do verão russo era mais do que branca: era dia claro, o sol faiscava no canto do céu. Combinamos de deixar os equipamentos de trabalho nos respectivos quartos e sair para comer algo. Felizmente, nosso hotel era bem localizado, ficávamos nas franjas do principal calçadão do centro histórico de Kazan, pontilhado de bares e restaurantes.
Em cinco minutos, lá estávamos nós, da equipe da RBS, caminhando devagar pelo calçadão, à procura de um lugar que servisse uma refeição tardia, cruzando por uma curiosa fauna humana: homens e mulheres de todas as idades, alguns bem jovens, pré-adolescentes mesmo, muitos deles notoriamente bêbados, cambaleando e gritando e cantando, uns enrolados nas bandeiras de seus países, outros com rostos pintados com as cores nacionais, ou debaixo de cartolas coloridas ou cocares de penas.
Era uma visão estranha, meio caótica, meio de sonho ou de loucura. Imaginei que Troia tivesse ficado assim depois de seus habitantes terem arrastado o monumental cavalo de madeira para dentro das muralhas da cidade, comemorando que, após uma década de luta, enfim estavam livres dos gregos. Mal sabiam que Ulisses e seus homens espreitavam em silêncio, no ventre daquele presente de grego, até que todos adormecessem devido ao porre e ao cansaço.
Foi uma ideia tola. Aquilo não tinha nada a ver com guerras antigas. Ao contrário, era uma celebração do futebol. Uma festa. É que todos estávamos abatidos pelo fracasso da Seleção, como boa parte dos brasileiros. Não merecíamos mais esse revés. Eu, pessoalmente, me sentia ressentido. E não devia. Devia ser analítico e frio.
Tentei entender meu sentimento. Comecei a ver que o que aconteceu com a Seleção refletia o que acontece com o país. Essa nossa história de esperanças e decepções.
Essa nossa história de desilusão. Faz tempo. Nos anos 1980, tínhamos certeza de que a democracia nos redimiria. Lembro daquela primeira eleição presidencial, no fim da década. Que sensação maravilhosa de que o futuro se abria diante de nós. Mas o que houve foi Collor e o impeachment. Então, sobreveio a ótima surpresa de Itamar Franco, o controle da inflação, a estabilização do país. Terá sido por acaso que, nesse período, vencemos duas Copas?
Não, não foi por acaso. E, a partir daí, acreditamos que as promessas tinham se cumprido, o futebol brasileiro se reformulava, ficava mais parecido com o europeu em leis e fórmulas de campeonatos, a economia parecia robusta, fortalecida pela consolidação do Real e pela voracidade da China em comprar o que tínhamos para vender. A revista britânica The Economist publicou, na capa, uma ilustração em que o Cristo Redentor decolava do Corcovado. O Brasil sediaria a Copa e a Olimpíada. A Seleção estava bem fornida de craques, Ronaldinho, Ronaldo, Kaká, Adriano. Brasil!
Mas estávamos enganados. Havia soldados gregos dentro do cavalo dado. O crescimento econômico era artificial, e o governo democrático, em vez de cuidar estruturalmente do país, cuidava de se perpetuar no poder, corrompendo e se corrompendo, usando o Estado em proveito próprio, cavando uma trincheira para dividir a população entre os que o apoiavam e os que o criticavam. O que era feito de errado às escondidas começava a aparecer. Os soldados esperaram o fim do porre e saíram do cavalo. Sete a um para a Alemanha.
Agora, esta Copa da Rússia era a do recomeço. Pagamos o altíssimo preço por vários erros, faríamos tudo outra vez. Sem aquela abundância, sem aquele exagero, sem grandiloquência e promessas vãs, mas com parcimônia e trabalho sério. Tite parecia o técnico ideal e outra eleição se avizinhava. O time vinha crescendo, os adversários mais fortes iam saindo do caminho.
E aí deu-se o desastre de Kazan. A Seleção perdeu para um time mais fraco. Perdeu podendo ganhar. Devendo ganhar. Merecendo ganhar. Por que isso? É algo conosco?
Era o que sentia, naquela noite de derrota. É um pouco do que sinto ainda. Mas, tudo bem, vamos em frente, não vamos desistir. Um dia, ainda nos lembraremos de uma insólita madrugada de sol na longínqua Kazan, a capital dos tártaros, e vamos rir de tudo isso.
DAVID COIMBRA
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