quinta-feira, 26 de julho de 2018


Trotes de boçais

Para se sentir parte de um grupo, muitos homens topam qualquer parada

Ilustração
Mariza Dias Costa/Folhapress
Mariza Dias Costa/Folhapress
Entrei na universidade em 1966, na Itália. Naquela época, o sistema de trote de calouros parecia estar no fim.
Funcionava assim: diferentes grupos de "anciões" (estudantes encalhados, com anos de matrícula e resultado zero) vendiam sua proteção. Pagando em cigarros ou bebida, o calouro comprava e passava a carregar consigo o salvo-conduto de um grupo.
Com isso, ele só poderia ser vítima de trote por membros de outros grupos que cumulassem um maior número de anos de matrícula (ou seja, compostos por estudantes mais falidos ainda).
Era fácil evitar esse sistema; bastava mandar à merda o ancião que se aproximasse de você. As estudantes, aliás, não eram quase nunca vítimas, simplesmente porque elas achavam tudo isso uma besteira. Claro, elas não seriam integradas nos grupos, mas quem queria esses idiotas como amigos?
Os salvo-condutos eram pitorescos: pergaminhos com as assinaturas dos anciões do grupo (cada um com seus anos de matrícula) e com dezenas de desenhos e motes celebrando a vagina e outros orifícios femininos.
Nos salvo-condutos, espécie de passaporte pelos quais o estudante passava a fazer parte da parceria que o protegia, as mulheres apareciam como tantas bonecas infláveis, desenhadas por um desejo primário e frustrado.
Até aqui, nada de novo. Os grupos masculinos se unem facilmente ao redor de um conjunto de ideias fundamentais contraditórias: 1) não existe desejo sexual feminino; 2) se existe, é coisa de puta; 3) puta gosta de homem boçal que nem a gente; 4) conclusão do "silogismo": só nós sabemos dar prazer a essas putas todas, e quanto mais formos boçais, melhor.
Você acha isso exagerado? Pois bem, investigue um pouco como se formam e funcionam (na África do Sul ou na Índia, por exemplo) os grupos de "estupro corretivo" para mulheres lésbicas. A ideia é que as estupradas gostarão tanto que voltarão direto para a heterossexualidade.
Note-se, aliás, que não tem registro de grupos de lésbicas praticando "estupros corretivos" em homens gays.
Enfim, para se dar o prazer de se sentir parte de um grupo, muitos homens topam qualquer parada —por exemplo, dispõem-se a perseguir qualquer vítima (mulher, judeu, gay e, por que não, calouro).
Uma leitora, Cinthia Gonçalves Pereira, comentando minhas colunasrecentes sobre a boçalidade masculina, escreve-me:
"Ao ver os vídeos dos rapazes na Rússia zoando com a moça russa(tadinhos, só estavam brincando, papai e mamãe entendem), lembrei que no ano de 1992 ingressei na faculdade de direito do largo São Francisco e lá as calouras eram recepcionadas pelos veteranos com a singela música: 'Caloura vagabunda, eu vou comer sua b...a a b.... ieieieieieieieei, vou chupar suas tetas' (acho que tetas pode escrever). Cada caloura que passava ouvia esse cântico, além do coro ' b....eta, b...eta'. Era um constrangimento!"
Cinthia nota que "era uma turma grande de rapazes que fazia isso (hoje tudo pai de família, homens de bem da área jurídica). Será que algum deles se arrependeu ou acha que 'exagerou' no trote das calouras? É fácil pedir desculpa hoje, com redes sociais e viralização de vídeos."
Cinthia perdoa com facilidade. Se eu fosse reitor de uma universidade, mandaria todos os "brincalhões" de volta ao vestibular, por falta comprovada da maturidade necessária para cursar uma faculdade.
Agora, Cinthia acrescenta: "No largo São Francisco, isso ocorria na década de 90 e, pelo que sei, no começo dos anos 2000. Atualmente isso não mais acontece porque tais práticas são totalmente desaprovadas pelos coletivos existentes na faculdade. Um alento".
Será que terminou, então? Eu também pensava que o trote de calouros tivesse sumido definitivamente das universidades europeias a partir de 1968. Os estudantes, afinal, descobriram que havia coisas mais interessantes para pensarem e fazerem.
Mas não é assim. 1968 foi um intervalo. Na própria França, o trote de calouros ("bizutage") é hoje onipresente, inclusive na nata da academia francesa, as ditas "grandes écoles".
Será que os EUA seriam protegidos desse tipo de boçalidade? Não, e eles são um caso diferente e revelador. Não há trote imposto ao calouro —ao contrário, o campus se organiza para ajudar o recém-chegado. Mas o trote ("hazing") existe como prova para a admissão às "fraternidades" das quais os estudantes pedem (sim, você leu certo, pedem) para se tornarem membros. Socorro.
Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de “Hello, Brasil!” e criador da série PSI (HBO).

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