14 DE JULHO DE 2018
J.J. CAMARGO
NUNCA É DEMASIADO VIVER
Ninguém consegue animar o espírito de alguém cujo corpo esteja em decadência.Na minha experiência com doentes crônicos, se o paciente estiver se sentindo fisicamente melhor, a psicoterapia é desnecessária, mas se estiver pior, será inútil. Resta consolar e medicar os deprimidos, que apresentam um claro descompasso entre saúde e invalidez, pela deterioração da condição anímica, tão determinante no instinto da sobrevivência.
Claro que ânimo não depende apenas da saúde orgânica. Não por acaso, o conceito moderno de saúde foi ampliado e passou a contemplar o bem estar físico, emocional e social. Uma das lições mais chocantes que vivi quando comecei a trabalhar com transplantes foi o achado de um monte de gente que não mostrava nenhum entusiasmo em continuar vivendo porque a relação entre amar e ser amado estava quebrada, e, na opinião deles, os sacrifícios que teriam de enfrentar com o transplante eram absurdamente desproporcionais aos benefícios. Descobri, então, que o encanto de viver é um privilégio reservado, com exclusividade, aos bem amados.
Se houver alguma dúvida disso, tente animar um solitário e descobrirá que toda motivação para viver depende do quanto tenhamos alguém com quem contar e dividir. Não ter com quem começa a explicar a despreocupação com aparência, o descaso com não enxergar bem ou o desinteresse em ouvir o que dizem os circundantes.
Com certeza, estar vivo é buscar interação com o mundo exterior. A indiferença expressa pela alienação dos sentidos é o início da aceitação da morte, no princípio com condescendência branda e, adiante, nos limites do sofrimento, com desejo assumido.
Tentar consolar pacientes nesse estágio expõe um lado insuspeitado do fim da vida, quando imperam um conformismo e uma serenidade inimagináveis para aqueles que nunca se sentiram ameaçados e vivem esse deslumbramento meio mágico de quem jamais considerou que esta jornada talvez não seja para sempre.
Por outro lado, encanta a energia vital que promove verdadeiras ressurreições em pacientes idosos, para os quais os desavisados podem tolamente supor que longevidade seja sinônimo de aceitação.
Seu Ignácio tinha 89 anos quando foi internado na UTI com uma pneumonia grave e ficou 11 dias em respiração artificial, com prognóstico sombrio. Tendo sobrevivido o tempo necessário para a ação dos antibióticos, começou a melhorar rapidamente e o tubo foi retirado. Impressionava a todos a naturalidade e o interesse com que participava de todo o tratamento, incluindo a fisioterapia.
Uma manhã, ao visitá-lo, me fez um pedido revelador da sua intenção de não desistir: "Doutor, peça pra minha filha trazer meus óculos para a visita da tarde. Todo o pessoal aqui tem sido maravilhoso, mas tem uma menina da fisioterapia que é especialmente carinhosa comigo e acho que, além disso, ela é muito bonita. Imagina se eu morrer sem nem ter certeza disso!"
A vida estava de volta, não importava por quanto tempo. Óculos para apreciá-la, por favor.
jjcamargo.vida@gmail.com - J.J. CAMARGO
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