quinta-feira, 2 de maio de 2024


02 DE MAIO DE 2024
CARPINEJAR

Afogados nas próprias lágrimas

Uma das passagens mais assustadoras de Alice no País das Maravilhas centra-se em dois momentos sucessivos da narrativa imortal de Lewis Carroll: a personagem cresce sem parar, assusta-se com a sua súbita altura de edifício e começa a chorar; em seguida, diminui de tamanho e, transformando-se em uma miniatura de si mesma, acaba por se afogar nas lágrimas que verteu quando estava gigante.

Nosso desespero depende do que fazemos quando estamos por cima. Gotas de desleixo e indiferença podem virar oceanos na hora em que nos encontrarmos por baixo. Podemos nos afogar, assim como Alice, em nossas lágrimas.

Não dá para dizer que estamos suficientemente calejados, previdentes e conscientes das catástrofes climáticas que acometem o Estado de forma selvagem e sequencial nos últimos dois anos, mas melhoramos na sobrevivência.

Os avisos intermitentes dos serviços meteorológicos, a evacuação de residências ribeirinhas pela Defesa Civil com o toque pela madrugada de sirenes, o alojamento de moradores de terrenos críticos em ginásios, amparados com agasalhos, alimentação e donativos, e o controle rodoviário com bloqueios na estrada, em especial na Serra, pouparam existências com uma agilidade jamais vista antes.

Avançamos na cobertura dos danos. Entendemos os riscos de uma calamidade social com um volume pluviométrico de um mês - precipitação acumulada de 300 milímetros - acontecendo em apenas um dia.

Tanto que eventos e shows foram cancelados sem protesto, e o embate entre Inter e Juventude pela Copa do Brasil, previsto para o Beira-Rio, foi suspenso com o acordo tácito das partes.

Já existe uma aceitação das dificuldades, um discernimento público da gravidade dos alagamentos e deslizamentos de terra, um consenso em torno do socorro aos flagelados e de forças-tarefas para contornar rompimento de pontes e ilhamento de cidades.

Não mais nos espantamos com a força temperamental da natureza, com o desequilíbrio ecológico (mesmo que sempre lamentemos os danos), porém nos encontramos um passo atrás do ideal, que é nos mostrarmos soberanamente preparados para a súbita elevação dos rios, incorporando espontaneamente uma postura de abrigo antitragédia. Toda mobilização hoje é no sentido de salvar vidas. Respiraremos aliviados ao atingir o patamar de proteger vidas com antecedência. 

Só teremos tranquilidade quando não mais testemunharmos moradores se segurando no tronco de árvores para lutar contra a correnteza, ou buscando sair desesperadamente das janelas dos carros, ou acenando para helicópteros em cima dos telhados das suas casas submersas, ou soterrados, mantendo um fio de respiração e voz, debaixo de escombros. São cenas de que esperamos a extinção.

Pois uma vida perdida ainda é um universo inteiro, uma parte essencial da comunidade. Enquanto não zerarmos as mortes, não nos mostraremos devidamente escolados para o enfrentamento dos ciclones e tempestades.

Eu estava nos Estados Unidos com a família quando um terremoto de 4,8 de magnitude atingiu a região de Nova York, no dia 5 de abril deste ano. Vimos na metrópole americana um exemplo de organização contra tragédias ambientais.

Todos que se localizavam na área do sismo receberam, ao mesmo tempo, um alerta do tremor por SMS. Havia uma sincronia no movimento de defesa, pedindo que tivéssemos prudência e seguíssemos as orientações de resguardo numa nova oscilação. Espero um dia acompanhar essa proeza coletiva: os celulares dos gaúchos soando, simultaneamente, uma advertência de temporais. Para ninguém mais ser pego de surpresa.

CARPINEJAR

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