31.dez.2023 às 7h00 -
Marcia Castro - Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.
Em 2024, que cada um faça a sua parte
Ao invés de criticar o SUS, se mobilize, cobre direitos; lembre-se de como era o Brasil antes dele.
Assisti à série documental "Betinho: no Fio da Navalha". É uma linda obra que retrata um passado nem tão distante. Um passado de luta pela democracia, pela dignidade, pela vida. A série é muito mais do que uma produção artística; é uma aula de história e de civilidade, uma inspiração para gerações atuais e futuras. Gostaria de destacar um aspecto da série documental: a importância do SUS na regulação da doação de sangue e no acesso aos medicamentos para tratamento da Aids.
Antes do SUS, grande parte das doações de sangue nos bancos públicos era feita por familiares e amigos de pacientes internados em hospitais. Militares e policiais por vezes eram recrutados para evitar baixas no estoque de sangue. Nenhuma remuneração era feita para os doadores.
Já nos bancos privados era comum que os doadores fossem compensados financeiramente. Isso garantia a manutenção do estoque e acabava por atrair pobres e vulneráveis. Chico Buarque imortalizou essa distorção no processo de doação de sangue na música "Vai Trabalhar Vagabundo": "Ganha no banco de sangue / Pra mais um dia".
Além disso, a vigilância sanitária era extremamente precária e não havia fiscalização sistemática para a detecção de doenças no sangue doado. Era comum adquirir hepatite e sífilis, dentre outras doenças, via transfusão de sangue. Com a chegada da Aids a situação se tornou ainda mais crítica. Betinho, seus dois irmãos e outras tantas pessoas adquiriram essa doença via transfusões de sangue.
Com a Constituição de 1988 e a criação do SUS, a comercialização do sangue passou a ser proibida e todo o sangue doado passou a ser rigorosamente testado.
Além disso, a série documental mostra a dificuldade de acesso aos medicamentos para tratamento do HIV nos anos 80. Atualmente, o SUS disponibiliza tratamento a todas as pessoas vivendo com HIV ou Aids, além de profilaxia pós e pré-exposição, sem custo.
É importante entender como era a saúde no Brasil antes do SUS, e ao entender esse contexto lutar por esse sistema de saúde que é uma das maiores conquistas da sociedade. Um sistema do qual dependem
A série documental mostra a importância da solidariedade e o esforço incansável de Betinho. Em um vídeo produzido em 2007, durante a campanha da ação da cidadania contra a fome e pela vida, Betinho conta uma história que representa a metáfora da solidariedade.
Durante um incêndio na floresta, animais corriam apavorados tentando se salvar. Um leão parou ao ver um beija-flor que pegava água no rio, jogava no fogo e voltava para o rio para pegar mais água. O leão perguntou ao beija-flor se ele achava que iria apagar o fogo sozinho. O beija-flor respondeu que sabia não ser capaz de apagar o fogo sozinho, mas que estava fazendo a sua parte.
E você, está fazendo a sua parte? Em 2023 o Brasil atingiu a posição de nona economia do mundo. Entretanto, ainda é um país com desigualdades marcantes, fome, carência de moradia digna, problemas de segurança, atividades extrativas ilegais na Amazônia, dentre outros desafios que persistem na sociedade há décadas.
Imagine o Brasil campeão em respeito aos direitos humanos e em solidariedade...
Ao invés de criticar o SUS, lembre-se do que era o Brasil antes dele, e entenda que o sistema funciona com cicatrizes abertas e purulentas, resultado de anos de subfinanciamento que o impedem de atuar de forma plena. Ao invés de criticar, se mobilize, cobre direitos, faça a sua parte, por mais que ache que não será suficiente.
Em 2024, que haja solidariedade, empatia, humanidade, respeito.
Por mais beija-flores e menos leões!