sábado, 14 de janeiro de 2023


A OBRA

Não é novidade o fascínio que a escritora italiana Elena Ferrante desperta em uma legião de leitores pelo mundo com sua ficção que apresenta um senso rigoroso de tempo e espaço, sem lugar para nostalgia ou sentimentalismo. Autora de obras como a Tetralogia Napolitana, publicada no Brasil pela Intrínseca, ela já vendeu milhares de exemplares no planeta.

Tampouco é recente a notícia de que Elena Ferrante não passa de um pseudônimo de alguém misterioso que prefere o anonimato. Diversas especulações já foram levantadas para revelar sua verdadeira identidade, mas nada foi definido. Contudo, ao preferir que a obra supere a persona, ela dá o devido valor à sua escrita, o que torna cada novo lançamento um fato extraordinário.

É o que acontece com a chegada de As Margens e o Ditado, livro que certamente vai testar a fidelidade de seus leitores ao apostar na não ficção - trata-se da reunião de quatro ensaios em que Elena fala sobre a própria jornada como leitora e escritora e oferece um raro olhar sobre as origens de seus caminhos literários. O livro, que tem novamente a chancela da Intrínseca, acabou de chegar às livrarias.

São três palestras e um ensaio. As primeiras têm uma origem pré-pandemia, quando Ferrante foi convidada a escrever três textos que seriam lidos ao público em Bolonha, Itália. A proposta era desafiadora, pois ela poderia tratar de qualquer assunto que pudesse interessar a uma ampla audiência e as matérias deveriam ser escritas para serem transmitidas oralmente. A covid-19, porém, modificou drasticamente a rotina do planeta, obrigando as pessoas a ficar em casa. Com isso, o evento foi logicamente cancelado.

Ferrante, no entanto, já havia escrito os textos, que foram proferidos tardiamente, no fim de 2021, e com a atriz Manuela Mandracchia interpretando o pseudônimo da autora - lembre-se que não se sabe nada sobre ela, nem mesmo se realmente é uma mulher. É por isso que o ensaio, composto para o encerramento da Conferência sobre Dante, também foi lido por outra pessoa, a estudiosa e crítica Tiziana de Rogatis. Ambas apresentações podem ser apreciadas em vídeos na internet.

As Margens e o Ditado é uma pequena joia. De uma forma clara, Ferrante revela suas principais influências, as lutas da juventude e a formação intelectual. Ponto de partida para atingir o ápice desse livro: sua reflexão sobre como a tradição literária excluiu sistematicamente a voz das mulheres ao longo dos séculos.

"Eu lia muito, e tudo o que me agradava quase nunca era escrito por mulheres. Das páginas, parecia sair uma voz masculina, e aquela voz me ocupava, eu tentava imitá-la de todas as maneiras", conta, na palestra A Caneta e a Pena. A partir daí, Ferrante se recorda da poderosa influência que recebeu de outras autoras (como Virginia Woolf, Emily Dickinson e Gertrude Stein) para propor uma fusão do talento feminino.

Como bem observou Molly Young, no jornal The New York Times, Ferrante concebe o escritor, com um aceno para Virginia Woolf, como uma "pluralidade hipersensível toda concentrada na mão que tem a caneta", e menos uma entidade corporificada do que uma enxurrada de "pura sensibilidade que se alimenta do alfabeto".

Essa noção começou a ser esboçada quando ela era ainda adolescente e colecionava cadernos com seus escritos. "Eu pensava: tudo o que estimula casualmente o nascimento de uma narrativa está lá fora, esbarra em nós e vice-versa, nos confunde, se confunde", observa, na palestra Água-Marinha. "A escrita tinha, essencialmente, olhos: o tremor da folha amarela, as partes reluzentes da cafeteira, o anular da minha mãe com a água-marinha que emanava uma luz celeste."

Após a descoberta de sua potencialidade como escritora, veio a terrível constatação de suas falhas: "Em poucos anos, passei a ter a impressão de não saber mais escrever. Nenhuma página estava à altura dos livros que me agradavam". Diante de uma batalha inglória, Ferrante testa seus limites (como na questão da narração em primeira pessoa), até chegar a uma lição definitiva: renda-se à sua ambição de reproduzir, na gramática e na sintaxe, o "turbilhão de detritos" que constitui a realidade.

As Margens e o Ditado

De Elena Ferrante.

Ed. Intrínseca, 128 páginas, R$ 40 (impresso) e R$ 25 (e-book), em média

Um dia de manhã cedo faltavam palavras. Antes disso, nenhuma palavra. Havia fatos, havia rostos. Numa boa história, diz Aristóteles, tudo o que acontece é impelido por alguma outra coisa. Assim começa a introdução de Anne Carson para o seu Falas Curtas, livro de poemas em prosa publicado originalmente há 30 anos, em 1992, por uma editora independente no Canadá, e lançado agora no Brasil pela Relicário simultaneamente a outro lançamento, Eros: o Doce-amargo, da Editora Bazar do Tempo.

De início, o leitor de Falas Curtas sabe: tudo o que acontecer dali em diante será projetado pelas palavras que faltavam. A introdução funciona como uma espécie de guia para o ambiente de flutuação que encontramos a seguir. Carson nos revela o seu método: "Comecei a anotar tudo o que era dito". "Rastros e vestígios" são perseguidos pela autora de modo a evitar o tédio.

À primeira vista, tudo parece ser muito concreto e até plano no mundo recriado pela autora. E pode parecer óbvio, mas não é: se olharmos para as palavras de outro ângulo, tudo parece perder a sua forma primal para depois, aos poucos, reconquistá-la.

A sequência de 53 fascículos surge a partir de um encadeamento de reflexões e imagens que justamente repelem a obviedade. Vívidos e inconclusivos, os poemas apontam para lugares diversos, de Ovídio a Brigitte Bardot, passando por Van Gogh, Sylvia Plath, gueixas e a decolagem de um avião.

Não se trata de uma obra passível a interpretações fáceis ou elogios despropositados. Antes, Falas Curtas é um livro que convoca o leitor para o estilo inconfundível da autora e para os meandros da linguagem poética. Desfaz as fronteiras tênues entre os gêneros literários. Serão mesmo poemas em prosa ou talvez ensaios, narrativas curtas? A definição pouco importa diante do fascínio obscuro que os textos suscitam no leitor, com camadas diversas de compreensão, mal situados entre a erudição e o que parece, de imediato, banal. E é neste deslocamento que está a força do livro.

Cabe ao leitor ampliar sentidos para se deixar levar pela precisão das frases de Carson. E, como ela mesma já disse sobre a literatura grega antiga, é uma leitura que exige buscar a lição de cada frase. Não como uma cifra, mas como a contação de um segredo íntimo e ao mesmo tempo universal. Em sua Fala Curta sobre Parmênides, Carson escreve, sobre um amigo italiano: "Receio não termos entendido o que ele dizia ou seus motivos. E se cada vez que ele dizia ?cidades? quisesse dizer ?embuste?, por exemplo?".

Talvez por isso os fascículos possam ser lidos também como confissões. "Em toda história que conto chega um momento que não consigo enxergar mais à frente", escreve na sua Fala Curta sobre o Homo Sapiens. Lemos Falas Curtas como quem espia pelo buraco da fechadura de um quarto. E no final descobrimos que o quarto era, esse tempo todo, o nosso.

Nascida em Toronto, Canadá, em 1950, Carson é poeta, ensaísta, professora de literatura clássica e reconhecida tradutora de grego antigo, tendo traduzido para o inglês peças de Sófocles e Eurípedes e poemas de Safo. Nos últimos anos, foi um nome frequente na lista de indicações ao Prêmio Nobel de Literatura. Original e diversa, a sua obra está localizada em grande parte entre o ensaio e a poesia, estabelecendo diálogos com outros escritores, pensadores e artistas, além de figuras bíblicas, históricas e mitológicas.

O Método Albertine (Edições Jabuticaba, 2017), por exemplo, primeiro livro da autora publicado no Brasil, sustenta-se pela paixão de Carson por Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust - em especial por Albertine, aprisionada pelo narrador no volume A Prisioneira. Albertine é a personagem que mais aparece no romance de autor francês - 2.363 vezes, em 807 páginas, adormecida em pelo menos 19% delas. Os dados estão no texto e lhe dão o tom bem-vindo de um exame obsessivo.

Autobiografia do Vermelho (Editora 34, 2021), por sua vez, reinventa a história de Gerião. Na mitologia grega, Gerião é um gigante detentor de um enorme rebanho de bois vermelhos, e Hércules, para tornar-se herói, tem como uma das suas doze tarefas matá-lo. Na versão irreverente de Carson, Gerião aparece como um adolescente gay apaixonado por Hércules. Nos Estados Unidos, o romance conquistou a crítica e os leitores.

Falas Curtas talvez seja o mais misterioso entre os três, e a sua leitura está sempre no limite do risco entre o que funciona e o que não funciona. Mas não se vale desse risco toda poesia? Para os mais afeitos ao gênero, o lançamento de 108 páginas é um mar que se abre. Nada-se a braçadas. Para quem não é fã de poesia, Falas Curtas - apesar da singeleza da linguagem - parece deter uma opacidade indecifrável e diz, com o perdão do trocadilho, pouca coisa.

Saímos da sua leitura com mais perguntas do que entramos, e com um estranho sentimento de fidelidade à obra. Talvez possamos inclusive devolver ao livro a indagação essencial que, a certa altura, ele mesmo faz: "Quem é você?". Mas, para uma pergunta tão grande, talvez nenhuma resposta seja correta ou boa o suficiente. 

UBIRATAN BRASIL LEONARDO PIANA 

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