terça-feira, 5 de maio de 2020



05 DE MAIO DE 2020
DAVID COIMBRA

A volta das vivandeiras alvoroçadas

Durante o começo do regime militar, o marechal Castello Branco proferiu uma frase de que gosto muito. Proferiu, de fato, que marechais não dizem nem falam; proferem.

Ontem, o general Sérgio Etchegoyen, ex-ministro do governo Temer, repetiu um naco dessa frase, em entrevista ao Timeline, da Gaúcha. Sorri, ao ouvir a expressão citada pelo general, porque me lembrei da beleza da frase completa.

O Timeline, aliás, não entrevistou apenas um, senão DOIS generais, ontem pela manhã. O outro foi o vice-presidente da República, Hamilton Mourão. E confesso que isso, de entrevistar generais, me faz feliz, porque é um sinal da fortaleza da nossa democracia - por muito tempo, raros eram os militares de alta graduação que concediam entrevista e, quando concediam, era quase sempre com desconfiança, com uma sobrancelha erguida e o olhar de soslaio - generais eram avessos à imprensa.

Mas agora eles falam com naturalidade, e foi com naturalidade que o general Etchegoyen lembrou aquele termo tornado célebre por Castello: "Vivandeiras".

A frase inteira é uma preciosidade tanto no estilo algo tortuoso quanto no conteúdo cheio de significado. Castello falava a respeito dos políticos que pediam a continuidade da ditadura militar e a extensão do seu mandato, logo após o golpe de 1964. Deles disse o seguinte:

- São as vivandeiras alvoroçadas que vêm aos bivaques bulir com os granadeiros e causar extravagâncias ao poder militar.

Que delícia de frase.

As vivandeiras existem desde que existe a guerra. Ou seja: desde que o ser humano se organizou em coletividades - a guerra, afinal, é um subproduto da civilização, o que não deixa de ser uma ironia.

As vivandeiras seguiam os exércitos para vender víveres aos soldados. Às vezes, inclusive, vendiam a si próprias. Ou, melhor, alugavam seus corpos para satisfazer os guerreiros em meio ao repouso.

Castello, assim, reduzia os políticos golpistas a rameiras interessadas em faturar com a ação dos militares. E o general Etchegoyen, ao repeti-lo, observou que elas estão de volta, essas vivandeiras, sob a forma dos amalucados bolsonaristas que entram na camisa da Seleção Brasileira, enrolam-se na bandeira e clamam pelo fechamento do STF e do Congresso Nacional.

Segundo Etchegoyen, esses golpistas do século 21 são "ridículos e anacrônicos". Mourão concordou, e reforçou que não há a mínima chance de as Forças Armadas apoiarem quaisquer movimentos antidemocráticos, hoje em dia.

Foi bom ouvir isso de dois generais. Foi, de certa maneira, um alívio. Porque, embora os desvairados bolsonaristas sejam nada mais do que isso, desvairados, embora eles sejam apenas um punhado, embora eles contem com o repúdio de todas as instituições, basta saber que ainda existe quem pense dessa forma para se ficar preocupado. A essa altura da história, ninguém deveria sequer cogitar de que uma ditadura, qualquer ditadura, possa ser uma coisa boa. Não é. Nunca foi. Para ninguém. Exceto, é claro, para os próprios ditadores. E para suas vivandeiras alvoroçadas.

DAVID COIMBRA

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