quarta-feira, 15 de agosto de 2018


15 de Agosto de 2018 | N° 18944 
L.F. VERISSIMO

Etiqueta


A Duquesa de Noailles era conhecida na corte de Luiz XVI como ?Madame l?Etiquette?. Era obcecada pelo protocolo. Tanto que, quando ficou senil, começou a escrever longas cartas para a Virgem Maria discutindo questões de etiqueta no céu e ditando regras de conduta e prudência na eternidade. 

O padre confessor da duquesa respondia às cartas, assinando-as ?Maria?. As respostas aparentemente não agradavam à velha e ela uma vez comentou a respeito da sua correspondente no Além que não se podia esperar demais de uma camponesinha de Nazaré que, afinal, só entrara para a nobre Casa de Davi através do casamento.

A Duquesa de Noailles ficou como um exemplo extremo das pessoas que não entendem o tempo em que vivem. Certamente, o comentário que faria sobre a revolução que rugia à sua volta, se tivesse lucidez para notá-la, seria que se tratava de uma coisa de muito mau gosto. Pelas normas da duquesa, tudo se dividia entre o que era e não era de bom-tom. Um recado para a elite e a classe patronal brasileiras, que deveriam mudar seus termos de referência para não acabar como a duquesa ? que, por sinal, foi guilhotinada.

Não se sabe a opinião da Duquesa de Noailles sobre outra questão protocolar francesa. O restaurante Lapérouse, que fica na beira do Sena, na esquina com a Rue des Grands Augustins, tem salas particulares, usadas, há mais de século e meio, por grandes senhores e suas ?petites filles?. Na parede de uma dessas salas, ainda existe um espelho, todo riscado. 

Era na sua superfície que as meninas testavam a autenticidade dos diamantes que acabavam de receber ? e portanto o caráter e as intenções dos seus acompanhantes. A cada arranhão daquele vidro correspondia um romance, um caso bem-sucedido ou no mínimo uma hora de amor agradecido. Tudo feito com elegância e distinção.

Mas a verdadeira prova de comportamento civilizado ? e, pensando bem, de todos os valores da época ? devia ser quando o diamante do anel não produzia nenhuma marca no espelho. Imagine a cena, a moça esfregando o falso diamante contra o espelho e este, com silenciosa eloquência, denunciando a falsidade tanto da pedra quanto do cavalheiro. 

Ninguém, certamente, diria uma palavra sobre o vexame. O único efeito do fiasco seria que, pelo resto da noite, ficaria entre eles um clima que só pode ser descrito como meio assim. Eles teriam que conviver, educadamente, com a evidência de que ?monsieur? era um patife.

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