sábado, 26 de março de 2022


26 DE MARÇO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Onde foi parar minha vida?

Procuro embaixo do tapete, dentro do açucareiro... cadê? Ainda ontem ela estava aqui, diante dos meus olhos, anotada nas páginas da agenda, o passo a passo dos meus dias, com horários regulados, almoço e jantar, reuniões de trabalho, namorado no fim de semana.

"Ainda ontem" é vício de linguagem. Não faz tão pouco tempo assim, já que entrementes houve uma pandemia que nos paralisou por dois anos, e quando ela começava a ser controlada, veio essa guerra que alterou os batimentos cardíacos de todos, então não foi ainda ontem que eu tive uma vida medianamente organizada, mas lembro bem dela, não pode estar tão longe. Atrás da geladeira, esquecida na garagem... cadê?

Todas as lives começavam com a mesma pergunta: qual será o legado dessa crise, como vai ser quando o vírus deixar de ser uma ameaça, que pessoas nos tornaremos depois dessa experiência? Ah, seremos mais solidários, levaremos em conta o coletivo, teremos mais consciência da nossa fragilidade, inventaremos novas profissões para impulsionar a economia, tudo vai mudar, nada vai mudar. Foi chute para tudo que é lado e ainda aguardo as confirmações dos prognósticos. De certo, mesmo, é que a vida que eu tinha aproveitou que eu estava distraída com o rebuliço do mundo e picou a mula.

Restou essa desatinada buscando a si mesma. Na gaveta do banheiro... será?

Olha eu ali no posto abastecendo o carro para dirigir 800 quilômetros, sem medo do cansaço ou do preço da gasolina. Olha eu em frente ao computador pesquisando uma passagem barata para voar até um país caro (Paris e Londres não pareciam tão distantes). Olha como eu dormia mais de cinco horas por noite e tinha cinco quilos a menos: lembranças enviadas pelo Facebook, tentando me convencer que aquela continua sendo eu mesma (coitado, até ele ficou no passado).

Nos álbuns de fotografias, escondida nas páginas de um livro... onde ela se esconde de mim, a vida que era minha e que não sei onde foi parar?

Mas parou. É fato. Paralisou no sinal vermelho e o motor apagou. Alguns veículos passam por mim em baixa velocidade e gritam pela janela que estou atrapalhando o tráfego. Outros estão apagados também, ao meu lado, aguardando reboque. Parei, paramos. Você não?

Pode ser apenas um longo agora, reflexão necessária sobre este vácuo entre o que fomos e o que seremos. No fundo é a mesma vida, ainda que pareça vida nenhuma. Talvez tenhamos alcançado o tão desejado "depois da pandemia", mas não consigo retomar do mesmo ponto onde parei, nem realizar um novo parto de mim mesma, desaprendi a partir e acho tudo bem estranho: sério que usei a palavra entrementes nesse texto? Vou continuar procurando, a vida de antes deve estar em algum lugar.

MARTHA MEDEIROS

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