terça-feira, 15 de março de 2022


15 DE MARÇO DE 2022
NÍLSON SOUZA

Incidente em Porto Alegre

Um pouquinho de ficção para aliviar a tensão. Indignadas com o vandalismo e com o descaso histórico do poder público na preservação dos monumentos, as estátuas de Porto Alegre decidiram aproveitar o aniversário da cidade para fazer uma manifestação pública semelhante à reunião de mortos insepultos do romance de Erico Verissimo. O local escolhido foi a Praça da Alfândega, onde já se encontravam o General Osório, o Barão do Rio Branco e sua dama republicana, o poeta Mario Quintana e seu convidado Carlos Drummond de Andrade, além das hermas de jornalistas e outros personagens impossibilitadas de se locomover por falta de corpo e membros.

O primeiro a chegar foi Bento Gonçalves, montado no seu cavalo esverdeado e já tentando assumir o comando do protesto:

- Compatriotas! O nome da cidade nunca soou em vão aos meus ouvidos.

Sentadinho no seu banco, Quintana murmurou:

- Como seriam belas as estátuas equestres se constassem apenas dos cavalos!

Logo atrás do general chegaram Giuseppe e Anita Garibaldi. Inspirado pelo pôr do sol mais lindo do mundo, o italiano foi logo bradando:

- O socialismo é o sol do futuro!

Com eles apareceu também o Gaúcho Oriental, observado com desconfiança pelos demais por causa de seu jeito um tanto desengonçado. O Laçador tratou de defender o vizinho gaudério, pela voz de seu modelo Paixão Côrtes:

- Gaúcho é um estado de espírito. Não é um nascer, é querer ser.

Mas o monarquista Conde de Porto Alegre não se conteve. Com um olhar irônico para os revolucionários, resmungou a frase que se tornou sua marca registrada no final da vida:

- Isto é demais!

Júlio de Castilhos saiu da sombra de um jacarandá e concordou no seu positivismo levemente autoritário:

- Temos liberdade demais! Vendo que o debate estava se acirrando, Leonel Brizola saltou do pedestal e, bem ao seu estilo, alvejou:

- Estou pensando em criar um vergonhódromo para os políticos sem-vergonha que ao verem a chance de chegar ao poder esquecem os compromissos com o povo.

Outro apaziguador, o cantor Teixeirinha fez um apelo às esculturas momentaneamente animadas:

- Olha para o céu azul e grita junto comigo: viva o Rio Grande do Sul.

Foi a deixa para o primeiro atleta de bronze, Renato Portaluppi:

- Azul! Isso mesmo: o Grêmio é o melhor do Brasil.

Ao que Fernandão retrucou com firmeza: - Estátua de vivo não fala aqui. Vamo, vamo Inter!

Gre-Nal de novo? São Pedro interferiu. Ouviu-se um trovão e começou a chover. As estátuas se dispersaram e Elis Regina cantou:

- São as águas de março fechando o verão.

NÍLSON SOUZA

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