terça-feira, 29 de março de 2022


29 DE MARÇO DE 2022
DAVID COIMBRA

O riso

O som daquele riso me fez parar. Era uma gargalhada gostosa, que vinha de algum lugar em meio às árvores. Alguém ria e ria. Fiquei curioso.

Vinha passando em frente a uma praça lindíssima e absolutamente original: é uma praça sem bancos, sem brinquedos, sem flores, sem nada além de árvores. Mas não são árvores comuns. São de uma espécie chamada faia-europeia, pelo que li. Essas faias foram plantadas de maneira que suas copas fechadas desçam quase até o solo. O efeito é de tirar a respiração. Você passa sob a parede de folhas e é como se entrasse em outra dimensão da existência. Você está debaixo de uma imensa cúpula verde e marrom, onde o ar é suave, onde tudo é paz.

Você está no interior da árvore.

É um lugar limpo e muito bem cuidado. Fico imaginando o investimento do poder público na conservação daquela pequena praça que está sempre deserta. Ou quase sempre, porque, naquela tarde de outono, alguém ria sem cessar em meio às sombras do estranho mundo formado pelas faias.

Era risada de criança pequena. Ela ria com tanto prazer, que não resisti ao impulso de ir até lá para ver o que se passava. Saí da calçada e avancei pela grama aparada com critério. O riso continuava, enquanto eu ia em frente. Agachei-me para passar pela cortina de folhas. Dei mais um passo. Pus-me ereto e pisquei para acostumar os olhos à penumbra.

Lá estavam eles. Um jovem casal de latinos, logo percebi que eram latinos pela tez mais escura da pele, pelo bigode do homem, pelos cabelos negros da mulher. Eles sorriam, olhando para um menininho sentado num carro de bebê.

Era o menino que ria.

Quantos anos teria? Uns dois ou três, calculei. Olhei com mais atenção e vi que ele não tinha cabelo algum e que um fino cano lhe saía da narina esquerda. Próximo dali há um hospital para crianças. Supus que o menino devia ter alguma doença, estava em tratamento e os pais o levaram para passear pelas imediações. Havia sido uma boa ideia, o garotinho olhava para o teto de folhas e gargalhava com tanta alegria que fazia com que os pais rissem também.

Decidi não interferir naquele momento íntimo da família, já ia saindo, mas notei que eles me viram. Sorri para eles. O pai acenou de volta com a cabeça, a mãe continuou olhando para o filho e o filho continuou rindo.

Comecei a me virar para ir embora, só que, antes de girar o corpo, percebi outro detalhe: o menino não tinha uma perna. Ver aquilo me deixou desnorteado. Vacilei, não sabia exatamente o que fazer. Senti uma bola de emoção formar-se na minha garganta, respirei fundo e saí dali o mais rápido que pude. Ganhei a calçada, debaixo do sol. Parei por um momento. Respirei fundo. Lancei outro olhar para a praça. Pensei na pessoa que decidiu investir na beleza daquele lugar. Queria que ela, seja quem for, tivesse visto o que vi, para saber como valeu a pena. Como valeu a pena...

Segui meu caminho, sem saber se estava triste ou feliz, tendo certeza apenas de que, por algum motivo, o sentimento apertava-me o peito e marejava-me os olhos, ouvindo, ao longe, aquele riso de menino, aquele lindo riso de menino.

Texto originalmente publicado em 14 de novembro de 2014 - DAVID COIMBRA

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