sábado, 12 de março de 2022


12 DE MARÇO DE 2022
PENSAMENTO

SILÊNCIO, RACIONALIDADE, PODER

Em tempos belicosos, calar-se e encontrar-se consigo mesmo poderia ser algo mais recorrente, sugere professor e editor

Uma vez que podemos intencionalmente permanecer em silêncio, por certo em incontáveis ocasiões teremos, adrede, calado durante uma reunião, para evitar expor o dissenso, assim como em inumeráveis outras dessas ocasiões, teremos articulado discursos para mostrar as nossas belas razões, ou exibir nosso domínio sobre o tema tratado. Nas duas circunstâncias, porém, procedemos daquela forma principalmente em benefício próprio seja pela não exposição ou, ao contrário, pela premeditada manifestação vaidosa das nossas sabedorias , logo, na essência, almejando um poder. 

Silenciar eventual e propositadamente visando a algo é natural no ser humano, ele pode permanecer silente; todavia, lhe é complicado manter silêncio consigo próprio, pois não é uma disposição humana normal. Nos outros animais o silêncio é algo natural, ao passo que nos humanos vem a ser momento de confronto com conflitos interiores. Quem aborda de forma singular esse tema é o filósofo britânico John Gray, em sua obra O Silêncio dos Animais (Record), na qual também trata de outro tema que lhe é caro: a dubiedade ou mesmo a contrafação que carrega a ideia de progresso.

Uma das razões da infelicidade humana, disse B. Pascal em seus Pensamentos (1670;88), está no fato de o indivíduo não saber permanecer solitário em silêncio em seu quarto. Na modernidade, para além dessa dificuldade, guardar silêncio significa o constrangimento de abrir mão de algo que o mercado considera um valor: a exigente produtividade humana de cada dia, o requerimento da ação. Permanecer silente é se encontrar com suas inquietudes interiores, angústias, contradições; enfim, defrontar-se com os próprios indizíveis sofrimentos, o que a "produção da produtividade", empana. Afinal, dizem os produtivos, não se pode menosprezar a dispersão, que hoje seria considerada prática que dá um sentido à vida.

O indivíduo humano costuma não aprender com suas experiências; mais, não aprende que não aprende e, assim, esboça sua intermitente irracionalidade ao perpetrar repetidos malfeitos. Se o conhecimento avançou ao longo da nossa história, o mesmo não se pode dizer da racionalidade - pois o não uso da razão, do pensamento predecessor e condutor da ação, digamos assim, é notório no cotidiano. A razão humana é descontínua e parcial, os indivíduos não são totalmente racionais nem em tempo contínuo. 

Quando nos referimos à história humana queremos mais dizer sobre a história do progresso, que, todavia, não encontra correspondência num aumento da racionalidade: nesse aspecto, diz Gray, os indivíduos permanecem praticamente os mesmos, condição de que são provas cotidianas rudimentares, por exemplo, aquelas ridículas desavenças miúdas familiares ou comunitárias com que nos defrontamos a toda hora, ou os desentendimentos boçais no trânsito: só a irrazão os justificam. E então, onde radica o progresso?

Diante da já exaustivamente falada rasteira polarização ideológica que atormenta nossos dias - traço inequívoco da ausência da razão -, vem a calhar a lembrança de uma conformação pouco racional conhecida como dissonância cognitiva. Suponhamos que um neomessiânico me afirme que amanhã um disco voador chegará aqui com alienígenas de poderes extra-humanos para acabar com a dita polarização; todavia, no dia seguinte, nada: eles não vieram. 

O neomessiânico com certeza justificará a não vinda porque os visitantes constataram que ainda não seria o momento conveniente, precisaríamos sofrer mais doses de polarização irracional para merecermos descanso. Isto é, a não vinda dos extraterrestres salvadores reforça a crença absurda do neomessiânico, que tem suas convicções inabaláveis mesmo diante de qualquer outra constatação racional. Dissonância cognitiva. Como diz Gray, se a racionalidade fosse uma ciência, há muito teria entrado em descrédito.

Diante da guerra, em bonita terminologia humanista, criaturas conclamam a paz - uma manifestação inócua e tão vazia quanto sentimentalista. Comentaristas usarão todo seu vocabulário para explicar numa visão intelectual as causas geopolíticas da guerra, conquanto, imagina-se, estejam bem cientes de que a irracionalidade do conflito tem como origem primeira e fundação a inelutável ânsia pelo poder. Exaltar a paz é mero sentimentalismo. Paz, como liberdade, mas diferentemente de silêncio, é apenas um vocábulo.

CARLOS ALBERTO GIANOTTI

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