29 DE SETEMBRO DE 2018
CLÁUDIA LAITANO
O LIVRO NÃO ESCRITO
Dois amigos no quarto de um hospital. Um deles está morrendo, e os dois sabem disso. Há uma urgência posta na conversa: o projeto de um livro que o homem que está morrendo gostaria de ter escrito (se a doença não tivesse colocado tudo em segundo plano) e que ele espera que o amigo possa ajudar a finalizar. Pesando no ar, os subentendidos da circunstância extrema. Sobre o que conversar quando tudo que um deles disser será, de alguma forma, definitivo? Planejam-se providências práticas ou ensaia-se uma despedida? Reflete-se sobre o passado ou dá-se orientações sobre o futuro? Cede-se à emoção ou tenta-se manter o equilíbrio de superfície para não aumentar ainda mais o embaraço do momento?
Naquele quarto anódino, sem dono ou personalidade própria, tudo é intenso e agudo. Todas as palavras, mesmo as mais banais, assumem um sentido mais profundo do que aquilo que está sendo dito. Um palpite pode se se tornar uma sentença, uma lembrança imprecisa, um fato. Dor e falta de ar ignoram o esforço dos dois amigos para lidar com os subentendidos da morte com a naturalidade disponível. Eles sabem que não terão tempo suficiente para transformar aquela conversa no livro que o amigo doente havia planejado, mas agem e falam como se tivessem. É impossível prever quando será o último encontro - se fosse possível prever qualquer coisa, o livro inacabado teria sido escrito 10 anos antes.
De quinta a domingo, entre visitas de despedida e exames médicos, os dois homens se veem todos os dias. Na terça, o amigo doente morre. O outro sai de lá com a matéria viva daqueles encontros congelada em um gravador. Um mês mais tarde, publica a conversa, em forma de entrevista, no jornal que pertence à família do amigo. Cai o pano.
O homem na cama do hospital é o jornalista Otavio Frias Filho, que morreu no dia 21 de agosto, de câncer. O amigo é o jornalista Fernando de Barros e Silva, que publicou a entrevista no último final de semana no jornal Folha de S. Paulo, dirigido por Frias nos últimos 35 anos.
Além de diretor de redação, Frias foi ator e dramaturgo. Talvez por isso imaginei que essas conversas finais, no hospital, deveriam se juntar ao livro nunca escrito, em um rol de obras imaginárias, como uma peça curta em um único ato. Enredo e densidade dramática não faltariam. Há na entrevista confissões divertidas (como a de que o jornalista buscou no teatro não a realização artística, mas a proximidade das atrizes), comentários sobre a história recente brasileira, revelações pessoais e uma visão em perspectiva da própria trajetória que só a proximidade da morte permite. Sobre a histórica carta-aberta dirigida ao ex-presidente Collor, meses antes do impeachment, em abril de 1991 ("Seu governo será tragado pelo turbilhão do tempo até que dele só reste uma pálida reminiscência"), citada ficcionalmente no filme O Banquete, Frias comenta: "Você acha que está se preparando pra coisa mais importante da sua vida, mas aquilo que está fazendo já é a coisa mais importante da sua vida. Você acha que isso aqui é um ensaio para uma coisa maior que ainda vai fazer, mas, não, aquele ensaio já é a coisa que você fará".
Parte da nossa história será sempre um livro não escrito. Parte do nosso espetáculo nunca sairá da etapa dos ensaios.
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