22 DE SETEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA
A casa da Praia Brava
Certa noite, na Praia Brava, uma linda jovem preparou uma refeição para nós vestindo biquíni de crochê. Branco. O biquíni era branco. Lembro bem daquela cena. Não lembro da comida, mas da forma como foi feita jamais esquecerei. Como poderia? Foram verões históricos. Durante nove deles, em sequência, nós alugamos uma casa na Brava, e o Senhor viu que era bom.
Conto isso porque o Diogo Olivier carregou essa doce lembrança para o Sala de Redação, esses dias. Falávamos de tradições gaudérias, a propósito do 20 de Setembro, e logo alguém mencionou o arroz de carreteiro, e o Pedro Ernesto, pândego que é, desdenhou de mim, dizendo que eu não sabia nada acerca de cozinhar um ótimo carreteiro. Pois o Diogo fez justiça. Testemunhou:
- Lá na Praia Brava, o David cometia excelentes carreteiros com sobras de churrasco. É verdade. Para provar, recitei a receita rapidamente. Alguns ouvintes gostaram, pediram que a repetisse, e o farei a seguir.
O ideal, claro, seria conceber o carreteiro em um ambiente tão inspirador quanto era aquele nosso. Tínhamos um núcleo duro de amigos que alugava a casa por um conjunto alentado de dias. Os outros iam chegando. Um ficava dois dias, outros três, havia quem se encostasse por uma semana. O rodízio era intenso.
O Professor Juninho e o Degô tinham uma particularidade: eles dormiam até as quatro da tarde. Então, acordavam e iam fazer o desjejum, composto por cerveja e churrasco. Aquele churrasco se iniciava por volta das cinco, cinco e meia da tarde e se prolongava noite adentro. Enquanto isso, as coisas iam acontecendo. Pessoas chegavam e saíam da casa, casais novos se formavam, casais antigos se desfaziam, alguém desaparecia e reaparecia horas depois, uns jogavam carta, outros jogavam bola, todo mundo jogava conversa fora. O som rolava alto. Eu colocava um CD do Clapton com o BB King, faixa 6: "Help the poor... Won?t you help poor me?".
Chegava uma hora em que o churrasco acabava e as cinzas esfriavam, mas não a disposição do pessoal. Resultado: em alguma esquina da madrugada, a fome voltava com a fúria das ondas da segunda rebentação. Então, o degas aqui era convocado.
A essa altura, o Juninho já havia apelado para o Lulu Santos:
"Quando um certo alguéééém cruzou o seu caminho e mudou a direção?".
Dizia, o Juninho, que o Lulu Santos faz as mulheres dançarem com os bracinhos levantados, e isso é um ponto alto de qualquer festa.
Já eu estava concentrado no refogado. Sim, rapaz, tudo começa com o refogado. Havia picado gentilmente pelo menos quatro dentes de alho e uma cebola do tamanho de uma bola de tênis. No fogão, a panela de ferro já se acomodava sobre as chamas, esquentando o azeite de oliva. Assim que o azeite fervesse, despejava a cebola e o alho, mexia com brevidade, porém segurança, e abaixava o fogo drasticamente.
É claro que você sabe que, antes disso, eu já recolhera da churrasqueira toda a carne aproveitável. Raspara as costelas de gado e de porco, deixando só o osso liso. Cortara em pequeníssimos cubos a picanha, o vazio, o entrecot e até os salsichões sobreviventes. Toda essa carne variada eu juntaria ao refogado, aumentando o fogo outra vez.
Nesse momento, o cozinheiro chega a uma encruzilhada: você prefere o carreteiro vermelho, com molho de tomates, ou tão somente com o sumo da carne? O Pedro Ernesto prefere com tomates. Então, foi a receita que apresentei. E mesmo lá, na Brava, às vezes eu fazia com tomates, mas havia de ser tomate mesmo, o fruto vermelho e maduro, não os que vêm em alguma lata vulgar.
Retalhava, portanto, os tomates, como se eles fossem meus inimigos, e os deitava no refogado misturado à carne. E mexia com paciência e denodo. O molho tornava-se denso e oloroso. As pessoas já não dançavam mais. Passavam por mim e comentavam:
- Cheiro bom?
Você precisa trabalhar com a fome dos comensais, isso é muito importante.
Mas voltemos à panela sobre o fogão: gosto de temperar com um pouco de mostarda e ketchup e, não raro, metade de um cubinho de caldo de galinha. Acrescento água, também, mas com parcimônia. Infinita parcimônia. E sigo mexendo, salgando de leve, experimentando o sabor de quando em quando.
E o molho ia crescendo, ia se transformando em uma pasta vermelha borbulhante. Era aí que acrescentava o arroz. Mexia mais uma vez para fazer de tudo um único bolo. Tampava a panela. Reduzia o fogo. Agora era só esperar.
Foram madrugadas gloriosas aquelas na casa da Praia Brava. A moça de biquíni de crochê, aliás, aprovou meu carreteiro. Foi um ponto a meu favor. Mas essa história fica para depois.
DAVID COIMBRA
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