sábado, 5 de novembro de 2016



05 de novembro de 2016 | N° 18679 
ANTONIO PRATA

COMUNHÃO PARCIALÍSSIMA DE BENS

É um mistério o que une os casais. Às vezes são as semelhanças, às vezes as diferenças, às vezes látex e cera quente, às vezes baião e maria-mole. Não à toa, o deus do amor é uma criança com arco e flecha, um déspota mimado e irresponsável, tipo um Kim Jong-un alado penetrando com suas ogivas nucleares 7 bilhões de corações.

Se a cola é desconhecida, não é menos obscuro o solvente. “O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio”, assim começa a célebre crônica em que Paulo Mendes Campos desvela 62 possibilidades para o fim do amor: “Em cafés engordurados”, “nas encruzilhadas de Paris”, “nos roteiros do tédio para o tédio”; “o amor acaba”.

Tenho um amigo que resistiu estoicamente quando a mulher o largou por outro, mas não aguentou dois meses depois que ela voltou, casaram-se e ela revelou o péssimo hábito de espalhar as roupas pelo chão do quarto. “Eu vou no banheiro de noite e tropeço. Toda noite. Já pedi, implorei, mas ela não para”, me contou, bêbado e sem esperança, prostrado sobre um balcão. Numa dessas madrugadas desviou de um sutiã, mas se enroscou numa saruel: rompeu dois ligamentos e a relação.

A minha história não é menos triste. Por uma década, eu e a minha mulher vivemos felizes. Tivemos dois filhos, viajamos o mundo, assistimos a Sopranos, Breaking Bad e Mad Men. Eu achei que era pra sempre (ainda nem havíamos começado Game of Thrones), mas nos últimos meses meu casamento vem sendo ameaçado pelo carregador do iPhone. Segundo cremos eu e o Código Civil brasileiro (Livro IV, “Do direito de família”, a partir do artigo 1.511), a comunhão parcial de bens, regime em que nos casamos, faz com que tudo o que adquirimos desde que pusemos as assinaturas no livrão da juíza pertença aos dois, o que inclui nossa casa, nosso Honda Fit 2012, a TV na qual assistimos às nossas séries e – por que não? – nossos carregadores de iPhone.

Minha mulher, contudo, acredita que os carregadores de iPhone são bens pessoais e intransferíveis que não devem jamais ser compartilhados pelos cônjuges, algo tão íntimo como as escovas de dentes ou os rins – ou ainda mais íntimos, pois em casos de emergência casais se emprestam escovas e doam-se rins. O pior é que ela está convicta de que eu tiro o carregador dela das tomadas em que ela o coloca e, só para irritá-la, o escondo em rincões de difícil acesso, atrás do sofá grande ou do vaso de pacová, por exemplo.

Dia sim, dia não, a vejo bufando pela casa, arrastando móveis, rastejando pelos tacos e praguejando contra mim. Eu falo, “amor, pega o meu, lá no quarto”, mas isso só parece aumentar sua revolta. “Eu não quero o seu! Eu quero o meu! Cada um tem um! Por que você pega o meu?! Eu nunca acho!”

Hoje pela manhã, nós tivemos uma briga feia. Ela me acusou de ter colocado o carregador dela na tomada atrás da cama e entortado “o bagulhinho branco de dentro do USB”, depois saiu de casa batendo a porta, não sei se rumo a uma loja Apple ou a um apart-hotel. Agora à tarde, enquanto escrevia esta crônica, recebi três ligações de um “Número Desconhecido”, mas não atendi. Temo ser uma advogada anunciando que a minha mulher abriu o processo de divórcio e exige na Justiça a guarda dos nossos dois fios.

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