04 DE FEVEREIRO DE 2023
HISTÓRIA
CHIMANGOS E MARAGATOS
O ano de 2023 marca os cem anos da famosa Revolução de 23, ocorrida no interior gaúcho e que teve como protagonistas Flores da Cunha e Honório Lemes. Trata-se da última guerra genuinamente gaúcha. Fechou a tríade de confrontos internos entre sul-rio-grandenses, que teve início com a famigerada e exageradamente romantizada Revolução Farroupilha (1835-1845) e sequência, depois, com a violenta Revolução Federalista (1893), conhecida também como Revolta da Degola.
Um ano antes de estourar a Revolução de 23, os descontentamentos com a ditadura de Borges de Medeiros iam de fraudes nas eleições - Borges governava o Rio Grande do Sul há quatro mandatos seguidos, desde 1898 - à crise na classe pecuarista, que era marcada pela diminuição drástica das exportações de carne para o mercado europeu, devido ao fim da Primeira Guerra Mundial (1918).
Assis Brasil, líder da oposição, anuncia sua candidatura ao governo, desafiando Borges, que tentava seu quinto mandato. As eleições ocorrem em um clima bastante tenso. Mais uma fraude nas urnas ocorre e Borges acaba reeleito, fato que torna a situação, já muito tensa, insustentável. Em 25 de janeiro de 1923, Borges de Medeiros toma posse ao som de gritos "é pau, é canzil, viva Assis Brasil". E estoura a Revolução.
Os revolucionários de 23 se organizaram em colunas, com seus respectivos líderes nas diversas regiões do Estado: Leonel Rocha (Norte), Felipe Portinho (Nordeste), Honório Lemes (fronteira Sudoeste), Estácio Azambuja (Centro Sul) e Zeca Netto (Sul). Esses grupos possuíam centenas de combatentes. A mais famosa e a que ocupou o maior número de cidades foi a Coluna do General Honório Lemes, o "Leão do Caverá", homem simples, tropeiro e exímio conhecedor do Pampa.
Honório Lemes não tinha o aspecto dos caudilhos tradicionais. Tratava qualquer soldado como um igual. O efetivo de sua tropa chegou a atingir cerca de 3 mil homens. Lemes era um chefe carismático. Usava um linguajar típico, era sagaz e inteligente, ditava as ordens com termos adequados, frases sóbrias ritmadas e pausadas, indicando uma espécie qualitativa da pontuação, mesmo sendo quase analfabeto. Seu amplo conhecimento do território pampeano deu a ele uma grande vantagem com relação aos seus perseguidores. Mês a mês, a Coluna Lemes foi ocupando cidades do interior do Rio Grande do Sul como Alegrete, Dom Pedrito, Quaraí, São Gabriel e Rosário do Sul, entre outras.
No entanto, em Uruguaiana, Lemes não obteve sucesso, pois o intendente da cidade à época era o perspicaz Flores da Cunha. Atento aos acontecimentos nas cercanias da cidade, ele previu a inevitabilidade da luta armada e preparou uma forte defesa nos limites municipais. Com o sucesso da defesa de Uruguaiana, Flores da Cunha foi destacado com incumbência de perseguir Honório Lemes e sua coluna.
Em 14 de dezembro de 1923, após muitas batalhas e milhares de mortes em ambos os lados, chegou ao fim o último período de sangueira no Rio Grande do Sul. Os revoltosos que exigiam a deposição imediata de Borges de Medeiros tiveram de se contentar com tímidas alterações na constituinte do Estado. O Acordo de Pedras Altas, negociado por Assis Brasil, trazia para o Rio Grande, em troca de mais um período de governo de Borges de Medeiros (que terminaria em 1928), a proibição da reeleição, conforme o padrão federal.
A notável característica gaúcha da "peleia" mais uma vez foi posta à prova em 1923. A dicotomia nos mais diversos contextos evidencia nossa marca registrada: o gosto pelo confronto. É digna de destaque uma das frases de Honório Lemes, que, além de ser atemporal, revela-nos um pouco do modo de pensar desse carismático personagem da História do Rio Grande do Sul. Quando confrontado pelo ministro de Guerra, marechal Setembrino de Carvalho, o ministro interpelou-o:
- Mas afinal, o que é que os senhores querem?
Sem titubear, o inculto fazendeiro que chegara a general no curso da revolução respondeu:
- Não queremos homens que governem leis, e sim leis que governem homens.
? Menos violenta e mais curta do que as duas guerras locais que a antecederam, a Revolução de 1923 causou cerca de mil mortes, segundo historiadores, que costumam justificar o saldo menos sangrento, entre oturos fatores, à baixa participação popular no confronto.
? A divisão entre os grupos em guerra seguiu uma linha estabelecida anos antes: os correligionários de Borges de Medeiros usavam lenços brancos no pescoço e tinham o apelido de "chimangos". Os de Assis Brasil, com lenços vermelhos, eram os "maragatos".
? Ambos os termos tinham origem pejorativa, chimangos (às vezes gafado com "x") em referência a aves de rapina oportunistas e "maragatos" na tentativa de caracterizar uma identidade estrangeira ao grupo (a referência era uma região uruguaia colonizada por pessoas originárias da Maragateria, na Espanha).
? Uma curiosidade cultural associada à guerra é o livreto de poemas Antônio Chimango, de Amaro Juvenal. Trata-se de uma sátira a Borges de Medeiros assinada sob pseudônimo por seu desafeto Ramiro Barcellos e que circulou clandestinamente após tentativa de apreensão por parte do governante. Sua publicação original data de 1915, mas o livro ganhou fôlego com uma segunda edição, publicada justamente em 1923 - o ano do estouro do conflito.
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