sábado, 21 de março de 2020



21 DE MARÇO DE 2020
CORONAVÍRUS -  CYBELE CROSSETTI DE ALMEIDA Historiadora

"Não podemos deixar o medo acabar com a racionalidade"

A historiadora Cybele Crossetti de Almeida, professora de História Medieval no Departamento e no Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sustenta que epidemias contribuíram para grandes mudanças sociais ao longo dos séculos desde o Império Romano, além de gerar a busca por bodes expiatórios. Confira a entrevista concedida por e-mail a Zero Hora.

Que mudanças significativas outras epidemias ou pandemias provocaram no mundo?

Alguns exemplos são relativamente bem sabidos. O caso mais conhecido e com efeitos mais próximos e diretos é o da chamada Peste Negra, que entre teria dizimado algo em torno de 25 milhões de habitantes da Europa - cerca de um terço da população da época. Claro, isso ocorreu porque a peste havia sido precedida por algumas décadas de más colheitas relacionadas a mudanças climáticas no período e à fome endêmica que enfraqueceu a maioria da população. 

Mas, curiosamente, nem todos os efeitos da peste foram desastrosos: após contribuir para lançar a Europa em uma crise profunda, a peste e a queda da população modificaram as relações de trabalho e de poder. O resultado foi, na Europa ocidental, um acelerado processo de afrouxamento das relações de servidão que culminaram no fim da servidão e, portanto, em maior liberdade para os camponeses.

Epidemias também costumam gerar bodes expiatórios, como, em casos anteriores, judeus ou leprosos. Agora há relatos de preconceito contra chineses. Por que isso ocorre?

A questão de buscar bodes expiatórios está profundamente arraigada na natureza humana. Durante o Império Romano, quando ainda era pagão, cristãos foram apontados como culpados de vários desastres como o famoso incêndio de Roma na época de Nero. Mas, na Idade Média, o quadro se inverte, e os cristãos vão culpar judeus e leprosos pela Peste Negra, embora tanto judeus quanto leprosos adoecessem e morressem como ocorre atualmente com a China e o coronavírus. 

As razões vão desde questões políticas a elementos da psique humana, provavelmente um traço infantil que permanece em alguns indivíduos mesmo durante a idade adulta como uma forma de tentar explicar o inexplicável, ou o dificilmente explicável, através de fórmulas fáceis e falsas. Atribuir culpa a outros é a fórmula fácil por excelência. No caso atual, a acusação de que a China teria "fabricado" o vírus por motivos econômicos é fruto de ignorância ou má-fé. Ignorância porque casos assim existem e são registrados desde a Antiguidade e, já naquela época, muitas epidemias vieram de lá.

Por que tantas epidemias historicamente surgem naquela região?

Por uma razão simples, que não tem nada a ver com teorias da conspiração: muitas doenças surgem do contato próximo entre humanos e animais - típico de sociedades agrícolas - e se espalham mais rapidamente onde há maior concentração de humanos. Desde a antiguidade esse é o caso da China, e é por isso que a maior parte das epidemias vem de lá. Não podemos deixar que o medo acabe com a racionalidade.

Que efeitos práticos se pode esperar da atual crise do corona vírus?

Como historiadora, só posso esperar que a experiência com o coronavírus deixe alguma lição como melhores hábitos de higiene, por exemplo. Há pesquisas que indicam que substituir papel por secadores de mãos automáticos tem um efeito danoso para a proliferação de vírus, que acabam se espalhando mais, mas também sabemos que esses aparelhos foram adotados não apenas para poupar papel e o meio ambiente, como é proclamado nos locais que os utilizam, mas também por cálculos econômicos que frequentemente não priorizam a saúde pública.

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