sábado, 6 de agosto de 2016



06 de agosto de 2016 | N° 18601 
ANTONIO PRATA

PRIMEIRO DIA


Da zona sul até a Barra, pegando a nova linha 04 do metrô, vou otimista: o metrô existe, as escadas rolantes rolam, as luzes iluminam, sobre os trilhos corre um trem. Da Barra à Cidade Olímpica, pelo BRT, continuo contente: o BRT também existe, os ônibus têm rodas e janelas, o motor não funde, o teto não cai. Chegando à Cidade Olímpica, o mais surpreendente: os estádios – até eles! – existem, imponentes, vistosos, prontinhos para os Jogos. Caramba, não é que conseguimos?

“Conseguimos o que, cara pálida?!”, é o que me pergunto durante o novo trecho, o BRT da linha TransOlímpica, que sobe dessa Jacarepaguá futurista rumo ao velho Engenho de Dentro, cruzando os intestinos da zona oeste carioca. De uma hora pra outra, o Rio olímpico dá lugar ao Rio telúrico. Do lado de fora da janela, é Curicica, mas poderia ser Capão Redondo, Caracas, Islamabad. Como já dizia Mano Brown: “Periferia é periferia em qualquer lugar”.

O BRT parece uma cápsula extraterrestre com seus adesivos coloridos levando loiros e ruivas e orientais vestindo uniformes amarelos com crachás reluzentes sobre o mar ocre e cinza de autoconstrução, esquadrias de alumínio e pichações. De tempos em tempos, cruzamos um veículo blindado cercado por soldados com fuzis e metralhadoras. Estou indo assistir a uma competição olímpica, mas parece que fui parar num episódio de Homeland.

Descemos em Magalhães Bastos para pegar o trem. A estação é cercada dos dois lados pelo Exército. Na plataforma, alguns soldados muito jovens e assustados caminham de um lado pro outro. O trem chega lotado. Nós, os branquelos coloridos, somos observados pelos demais passageiros com um misto de assombro e hostilidade. Ambulantes cruzam os vagões. “Skol Latão! Guaracamp! Água! Grapete!”. Os gringos, ressabiados, tentam não fazer contato visual.

Vejo uma jaqueta do Exército despontar no começo do vagão e confesso sentir um certo alívio, mas é outro vendedor: “O celular descarregou no trem? No ônibus? Na barca? Aqui, ó, é só meter no fio! Coisa de cinema! De filme! Só por cinco real! Cinco real!”. Logo depois, outro ambulante camuflado: “Olha a batata, batata cebola e salsa, é só dois, só dois real na minha mão!”.

De onde virão essas jaquetas? Serão da ocupação do Exército na Copa? Na Rio+20? Terão sido trocadas por colchões? Por batatas? Pela trégua do tráfico ou das milícias? Impossível não lembrar dos soldados que combateram em Canudos 120 anos atrás e de volta ao Rio formaram, junto a ex-escravos, a primeira favela da cidade.

Chegamos no Engenhão. O estádio existe. As cadeiras estão no lugar. As bandeiras dos países todas penduradas. A grama é verdinha. A seleção feminina faz três na China. Vinte e sete mil pessoas cantam “Brasil! Brasil! Brasil!” e volto a ficar otimista. Há notícias de muita desorganização, mas, talvez, no frigir dos ovos e no tilintar de milhões de socorro público, os Jogos funcionem. Basta pensar nisso e fico triste de novo: durante estas duas semanas, talvez a única coisa que funcione no Brasil seja a Olimpíada. O resto do país, do lado de lá da cápsula olímpica, continuará ao Deus dará – e Deus, pelo menos em boa parte da zona oeste do Rio, pelo que se nota, não dá.

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