quarta-feira, 31 de agosto de 2016



31 de agosto de 2016 | N° 18622 
MARTHA MEDEIROS

Guerra de torcidas

Inevitável lembrar o dia da votação do impeachment do Collor. A cada voto favorável à sua saída, eu aplaudia. Era 1992 e eu tinha certeza absoluta de que lado estava. Aliás, não havia divisão, era um processo apartidário. Todos os brasileiros estavam do mesmo lado.

Hoje, o país vive situação similar, mas o país foi rachado em dois.

O discurso de Dilma no Senado, na segunda-feira, foi digno e sua disposição para o interrogatório, louvável. Estava me causando boa impressão, até que vieram as ameaças: se ela fosse deposta, adeus à democracia, seria o fim do país, nenhum contrato assinado teria mais valor.

A gente sabe que não é bem assim. Existe também a alternativa de o país seguir seu curso, fazer ajustes necessários, fortalecer a economia e respirar até a eleição presidencial de 2018. A não ser que a oposição se articule para tirar Temer do governo antes disso, uma ação que chamaríamos de quê? Revanche? Toma lá dá cá? Golpe? Direito constitucional?

Passei então a observar o outro lado do balcão e houve momentos em que concordei com alguns argumentos pró-impeachment, mas não senti a menor vontade de fazer parte daquela turma. Os que julgam Dilma também estão enrolados até o pescoço. Tanta retórica começou a me dar náuseas e percebi que não havia, ali, preocupação com o Brasil, e sim paixão pela política, pelo jogo, pelo poder.

No início da noite, uma câmera flagrou um cumprimento amigável entre Aécio e Dilma. Dava para perceber que sorriam. É isso aí. Tal qual a troca de camisetas entre jogadores ao fim de uma partida de futebol. Todos disputam a posse de bola em campo, mas, no final das contas, é só um esporte. Amanhã um pode estar jogando no time do outro.

É bem provável que a decisão já tenha sido tomada: Dilma saiu ou Dilma ficou. No momento em que escrevo, não sei. Tampouco consigo ter a certeza que tantos têm sobre o que é justo, neste caso, e o que não é. Segundo os comentários deixados nas redes sociais, voltaremos a ser uma ditadura, se ela sair, ou amargaremos uma crise sem fim, se ela ficar. Exagero. Não creio que haverá nem um grande atraso nem um grande avanço, independentemente do resultado. Então torço, antes de tudo, para que vença a lei.

Transformação, pra valer, virá com a continuidade do trabalho da Lava-Jato. Não se pode parar de punir quem roubou, seja de que partido for – começando por Eduardo Cunha. É a corrupção que tem que sofrer um impeachment colossal a fim de abrir caminho para uma renovação no nosso modo de fazer política. Só então evoluiremos, trocando gatunos por pessoas realmente comprometidas e mantendo dinheiro em caixa para investir num projeto de país que nos una de novo.

31 de agosto de 2016 | N° 18622
REPORTAGEM ESPECIAL

DECISÃO DO SENADO FICA PARA HOJE

VOTAÇÃO ENCERRA PROCESSO contra Dilma Rousseff e, segundo projeções, deve determinar a cassação da presidente afastada, com a posse definitiva de Michel Temer

No embate final entre acusação e defesa, exposições eloquentes, vozes embargadas, lágrimas e exaustão. Os advogados Janaína Paschoal e José Eduardo Cardozo travaram a última batalha de argumentos, apelando mais para tons emocionais e políticos do que para elementos técnicos-jurídicos. Embora elogiados, os indicativos são de que nada mudou na projeção de placar.

Hoje, a partir das 11h, o Senado deverá aprovar o impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff por crime de responsabilidade. Se o cenário se confirmar, Michel Temer será empossado definitivamente na Presidência até dezembro de 2018. Logo depois, viaja para a China, onde participará de reunião do G-20.

Os advogados abriram a sessão de ontem para as derradeiras alegações. Se Dilma teve momentos de emoção na segunda-feira, Janaína também marejou os olhos. No fecho, embargou a voz e disse que trabalhou pelo impeachment, entre outros motivos, “pelos netos dela (Dilma)”. Numa tentativa de reforçar a tese do “conjunto da obra”, lembrou que a denúncia original continha o escândalo da Petrobras, “que atingiu pessoas muito próximas da presidente”. A advogada ainda acusou Dilma de “estelionato eleitoral” – citando os aumentos de gastos de 2014, ano de eleição – e reafirmou a existência de crime de responsabilidade.

– Não me parece honesto dizer para o povo que existe dinheiro para programas sociais quando eles já não existem – afirmou Janaína, apontando os cortes que ocorreram em 2015, depois das eleições, já com a crise econômica em aprofundamento.

Fiel escudeiro de Dilma, Cardozo fez manifestação contundente, classificada como “brilhante” pelo senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), defensor do impeachment. Entre brados e murros no púlpito, com eloquência, dedicou-se a resgatar a história pessoal de Dilma, desde os tempos em que foi presa e torturada pela ditadura, e afirmou que as acusações contra ela são frágeis. Asseverou que a presidente afastada sofre discriminação por ser mulher.

Para Cardozo, os algozes de Dilma, entre “inconformados com o resultado da eleição de 2014” e “interessados em abafar a Operação Lava-Jato”, deram início à busca por um pretexto qualquer que embasasse o impeachment. Ele apontou o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ) como o responsável pela instabilidade do Palácio do Planalto.

_ Cunha assume a presidência da Câmara e inicia a desestabilização. Ele diz: “se não tiver votos do PT para arquivar o meu processo, eu abro o impeachment” – discursou Cardozo, recordando que o peemedebista aceitou a denúncia contra Dilma depois de o PT decidir não ajudá-lo a escapar de uma representação por quebra de decoro no Conselho de Ética.

NA TRIBUNA, SENADORES DEFENDEM SEUS VOTOS

Terminada a exposição, o ex-ministro falou à imprensa e não escondeu o desconforto com a citação de Janaína aos netos de Dilma, o que julgou desrespeitosa. Exausto, imerso desde a quinta-feira no julgamento final do Senado, foi às lágrimas e cruzou os corredores do Senado amparado por parlamentares aliados.

A partir da tarde, os senadores inscritos tiveram 10 minutos cada para discursar. Até às 0h50min de hoje, 53 de 62 inscritos haviam se manifestado.

– Duvido que um só de nós esteja convencido de que a presidente cometeu crimes. Não são as pedaladas que a excomungam. (...) Este Senado está prestes a repetir e ignomínia de março de 64. Se mesmo sem culpa esta Casa condenar a presidente, que cada um esteja consciente do que está por vir – avisou Roberto Requião (PMDB-PR).

A maioria dos discursos foram pró- cassação. Ainda que o governo Temer tivesse interesse em agilizar a sessão, poucos foram os senadores que deixaram de usar a tribuna no momento histórico.

– Este governo é um fracasso eticamente, politicamente e administrativamente. Tem de ser substituído por esse impeachment que atende aos pressupostos indispensáveis – registrou Álvaro Dias (PV-PR).

carlos.rollsing@zerohora.com.br fabio.schaffner@zerohora.com.br 

31 de agosto de 2016 | N° 18622 
DAVID COIMBRA

O velho Chico no Senado

Como velho admirador do Chico Buarque, não gostei de vê-lo sentado ao lado de Lula, apoiando Dilma, no Senado da República.

Não porque era Lula, não porque era Dilma; porque era um governo que apoiava. Ou ex-governo, que seja.

Poderia ser qualquer governo, poderia ser o de Temer, de Napoleão, de Obama ou de Churchill, não queria ver Chico se consorciando a ele. Não que um artista não possa ter posição política e manifestá-la. Pode, como qualquer cidadão. Até deve, se achar que deve. Mas todo governo merece a desconfiança do cidadão, e mais ainda de um artista de tal quilate, um contestador histórico, como Chico.

O saudável é que qualquer governo, depois de eleito, seja olhado de lado.

Sempre digo, repito, repetirei: nenhum governo, em nenhuma parte do mundo, em tempo algum, “salvou” uma nação. Governos podem ser bons ou ruins. As grandes nações independem disso. Grandes nações possuem sistemas que funcionam bem mesmo quando seus governos funcionam mal.

O Brasil, no caso do impeachment, está funcionando muitíssimo bem. Não o governo; o Estado. O brasileiro há de se orgulhar disso. O país está amadurecendo com este processo. Vários aprendizados vêm sendo feitos. Um dos mais importantes é que a população e até os políticos estão compreendendo que o poder não é exercido apenas pelo Executivo, ao contrário do que faz crer nossa longa tradição monárquica e ditatorial.

Outro, igualmente importante, é saber a distinção que existe entre o partido que ganhou a eleição, o governo e o Estado. São entendimentos sofisticados. Naquelas famosas gravações de seus telefonemas, Lula, por exemplo, deixou clara a sua tendência de raciocinar como Luis XIV, o Rei Sol, que propagava:

– O Estado sou eu.

Lula, esperando gratidão por indicação de promotores ou submissão da Justiça, tinha certeza de que era assim.

Não é. Nunca foi. Nem o governo era ele.

A maioria da população tem a mesma tendência. Só que as pessoas pensam:

– O Estado são eles.

Também não são. O Estado somos todos nós. Nós, como cidadãos, temos responsabilidades e obrigações, e não apenas direitos. O Estado não é um pai provedor. O Estado é a sociedade organizada de forma a permitir liberdade e segurança a cada indivíduo, dentro da lei.

O processo do impeachment está nos ajudando a compreender essas noções básicas de democracia. É verdade que a choradeira infantil e pouco cidadã dos petistas dizendo que Dilma sofre um golpe atrapalha um pouco essa compreensão, porque transforma o debate em birra. Mas esse discurso ficou restrito aos ressentidos, aos dogmatizados. A população, na verdade, já fez o que tinha de fazer: apeou o sectarismo do poder. Agora, as pessoas estão pensando em coisas mais importantes, como a separação do casal Bonner & Fátima.

É aí que me entristeço um pouco com o papel exercido pelo Chico Buarque no Senado. A obra de Chico é maior do que Dilma, maior do que o PT, maior do que Temer, maior do que o PMDB, maior do que qualquer governo desses que vão e vêm. Ele, Chico, diz que suas músicas de teor político são “datadas”. Não concordo.

Para mim, são imortais. Mas talvez as crenças dele sejam datadas. Talvez ele acredite, ainda, em salvadores da pátria, em Pais de Pobres, em Bons versus Malvados. Paciência. Não vou deixar de gostar das músicas do Chico por isso. Apesar de eu preferir o Chico de ontem, amanhã sempre haverá de ser outro dia.

31 de agosto de 2016 | N° 18622 
PEDRO GONZAGA

OS INIMIGOS DA POESIA SÃO

Tantos políticos, que transformam a língua em uma pasta amorfa, abatumada por promessas que não fermentam, há muito recoberta pelo glacê de caríssimas publicidades. Tantos amantes, que simulam um lirismo feito de preguiçosas fórmulas, parnasianos dos sentimentos, como se nunca houvera um Manuel Bandeira. 

Tantos intelectuais, satisfeitos em ler e entender o que só eles mesmos escrevem. Tantos poetas, como este, que se arrogam defensores da poesia, ou acreditam ser necessário defendê-la. Tantos acadêmicos, esterilizando a cada dia as palavras de sua potência e expressão, repetidas congresso após congresso, revista após revista até que pareçam fazer algum sentido, ao menos para seus pares. Tantos artistas, que se acostumaram à segurança de saltar com rede e agora temem qualquer coisa diferente de inócuas turnês. 

Tantas eminências, sem qualquer ouvido para o ritmo e a sonoridade do idioma. Tantos ativistas, que falam em nome daqueles que jamais lhes conferiram procuração, a calar a novidade de ferro e sal que podia estar na boca dos que ainda não venceram o silêncio. Tantos jurisconsultos, para os quais a letra da lei vale, naturalmente, mais do que a letra do verso. Tantos jornalistas, que acreditam que só pode haver fato nos fatos e nenhuma poesia. Tantos professores, a desencorajar seus alunos a olhar para o mundo através da lente do poema, confinando-os à homogeneidade da prosa por gosto ou falta de preparo.

Tantos inimigos. Tantas vitórias aparentes.

À poesia, agrada-lhe a luta corpo a corpo, a que se trava à noite, quando todas as luzes, exceto as de cabeceira, se apagam. Por isso, mesmo unidos, cedo ou tarde, cairão todos os estandartes, suavizados pela lira, um a um, derrotados em alcovas perfumadas, nas quais Safo e seus seguidores seguirão celebrando a vida transfiguradamente viva em redimidos caracteres.

terça-feira, 30 de agosto de 2016



30 de agosto de 2016 | N° 18621 
CARPINEJAR

Mãezinha por toda a vida

Valorize a sua mãe. Será a única a visitá-lo no presídio, mais ninguém. A sua mulher, os seus filhos, o seu pai e os seus irmãos podem e não podem comparecer na sala de espera, depende do jeito como viveu e amou, depende do que fez antes.

Já a mãe dispensa pré-requisitos. Não exige condicional nenhuma: ela irá visitá-lo com certeza, será a primeira da fila, a última a sair, não importa o que aconteça, se tem razão ou está absolutamente errado, se cometeu o pior dos crimes ou o menor dos males, se é um monstro ou um tolo, se foi preso pelo colarinho branco ou por mão grande.

Mãe não julga. Não sai de perto. Não escolhe o lado. Mãe será a única que jamais o abandonará. Estará defendendo-o quando perder o crédito com o banco e a credibilidade com os advogados, estará preparando a sua comida predileta e levando numa marmita qualquer que seja o inferno.

Portanto, cuide de sua mãe. Ela será a única que não o demitirá com o tempo. Só existe uma pessoa fiel e leal no mundo, por maiores que sejam as divergências e a distância cultural entre vocês.

Aproveite a velhice de sua mãe, leve-a para passear semanalmente, convide para um cinema ocasionalmente, busque-a em casa para caminhar e tomar sol no parque, dê um presente fora de hora, compre um chocolate de exceção da dieta.

Divida os seus dias na bonança, pois somente ela estará com você na pobreza e na desgraça, na adversidade e na doença, mais ninguém.

Só ela rezará por você quando igreja nenhuma acreditar mais em sua salvação. Só ela manterá a confiança quando não encontrar mais padre e pastor dispostos a recolher sua alma. Só ela ouvirá sua versão até o fim quando não restar mais nenhum ouvido crente em sua inocência. Só ela cumprirá as promessas e os pactos.

Que perdoe o meu sacrilégio, mas bênção de mãe vale mais do que a de papa, mais do que a de anjo, mais do que a de santo. Mãe não desiste diante de um milagre, começa a acreditar porque é impossível.

Mãe tem um ventre que não cicatriza inteiramente, tem um coração que jamais despeja, tem uma fé que não se abala e jamais fecha por completo o quarto da infância.

Ofereça carinho e amparo a sua mãe enquanto desfruta de condições, enquanto é fácil, não a abandone ao acaso e à sorte, preserve a sua derradeira amizade, cultive a sua definitiva confidência.

Mãe é a última fronteira do amor.


30 de agosto de 2016 | N° 18621
CAPA

Intercâmbio em tempos de crise

DESTINOS MAIS FRACOS economicamente do que o Brasil, cursos de curta duração, hospedagem em casas de família e estágio remunerado são alternativas para quem não quer adiar o sonho da experiência internacional

Ana Paula Dehnhardt Guasti, 24 anos, pretende unir o útil ao agradável nas próximas férias. Em janeiro de 2017, vai viajar aos Estados Unidos e estudar Business and Management. A jovem formada em Mídia Eletrônica optou por um modelo de intercâmbio que se torna atrativo em tempos de crise econômica: cursos de curta duração focados na profissionalização ou no aprimoramento de um idioma.

Para não adiar o sonho da primeira experiência internacional que pudesse lhe proporcionar mais do que compras, Ana Paula se planejou. Passou em uma agência especializada, conversou por horas com consultores e negociou até encontrar o tipo que se encaixasse no seu orçamento.

– Se eu fizesse somente uma viagem nesse tempo, talvez gastaria o mesmo valor (em torno de R$ 11 mil), e, com o intercâmbio, consegui financiar até o fim do ano que vem, depois da viagem. Com o curso, vou agregar expe- riência internacional à minha carreira, fora a troca de culturas por lá, já que escolhi o modelo de residência universitária – explica.

Ana Paula vai estudar na Stafford House, em San Francisco, na Califórnia, e, além de ter aulas teóricas, vai poder visitar empresas como a Microsoft. A escola é vinculada à britânica Cambridge.

O tipo de experiência procurada pela jovem é o mesmo de aproximadamente 70% dos orçamentos solicitados à operadora de turismo CVC em 2015: jovens com mais de 25 anos em ascensão profissional ou em posições estratégicas a fim de conciliar a viagem de férias com um curso de aperfeiçoamento no Exterior. Se, há 20 anos, os cursos de curta duração não atingiam 30% da preferência, o modelo parece ter caído no gosto dos intercambistas. A Brazilian Educational & Language Travel Association estima que, entre os mais de 230 mil brasileiros que viajaram para fora para estudar em 2014, pelo menos 40% tenha optado por cursos com duração de até um mês.

O diretor da CI Intercâmbio, Rafael Dib João, reforça a tendência de consumo de aliar viagem e upgrade no currículo:

– É uma realidade. Estamos atendendo muitas pessoas que pegam rescisão, férias, fazem uma economia e saem do país para se especializar. Aproveitam o momento que não é bom por aqui. Muitas vezes, escolhem países que permitem trabalho, para que possam se manter por lá. Aliam estágio, curso de idioma e trabalho.

Comprar com antecedência, parcelar os pacotes, utilizar milhas para as passagens aéreas e se hospedar em casa de família são outras recomendações para momentos de contas apertadas e sonhos altos.

– O esforço é válido, porque um mês no Exterior é equivalente a seis meses no país de origem, se considerarmos o aprendizado – diz Rafael, que rebate as críticas frequentes de que cursos menores não valem tanto a pena.

MÚLTIPLOS DESTINOS NO MESMO PROGRAMA

Além de eleger países onde a moeda local não esteja tão valorizada em relação ao real (confira lista ao lado), outra recomendação para quem deseja viajar ao Exterior em intercâmbio nos próximos meses é optar por programas que ofereçam múltiplas opções de destinos.

A diretora da Associação Brasileira de Intercâmbio Profissional e Estudantil (Abipe), Paula Semer Prado, destaca o programa Iaeste, da sigla International Association for the Exchange of Students for Technical Experience – entidade não governamental, apolítica e sem fins lucrativos, membro consultivo da Unesco, fundada em 1948 pelo Imperial College, em Londres.

– Há possibilidades de estágio remunerado por este programa em cerca de 90 países. Os do leste europeu, por exemplo, disponibilizam todos os anos vagas de estágio para estudantes brasileiros. Outra opção interessante é viajar na América Latina – orienta.

Critérios como período do estágio, pré- requisitos exigidos pelo empregador e valor da bolsa-auxílio a ser paga também devem ser levados em consideração nesse processo que, de acordo com Paula, proporciona ganhos em flexibilidade e respeito à diversidade.

– Além disso, o estágio remunerado favorece aqueles que buscam um intercâmbio em que parte do investimento pode ser amortizado. O recebimento de uma bolsa auxílio na moeda local cobre os principais custos de acomodação e alimentação no período do estágio, facilitando assim a ida do brasileiro ao Exterior – completa a especialista.

OPÇÕES PARA VIVER MOMENTOS EM FAMÍLIA

A busca de jovens profissionais brasileiros por novas alternativas no Exterior ao longo dos últimos 12 meses também foi comprovada pelo Student Business Bureau (STB). Essa demanda aumentou 30% em relação ao mesmo período do ano passado. Países como Canadá, Austrália, Irlanda e Nova Zelândia chamam a atenção dos brasileiros por oferecerem possibilidades de estudo e trabalho a estrangeiros. Anualmente, esses destinos divulgam listas de profissionais requisitados para complementar a mão de obra local, o que significa um facilitador para a segunda cidadania.

Além dos jovens, famílias rumam em busca de novas oportunidades para colocação no mercado. Um exemplo é o Canadá, onde os benefícios são estendidos a todos.

– Quando o aluno vai com a família para programas em instituições do governo, todos recebem visto. Outra possibilidade interessante é quando o cônjuge já chega ao Canadá com emprego. Nesse caso, os filhos podem fazer Ensino Médio gratuito – destaca Bruno Contrera, gerente de produto do STB.

OPORTUNIDADE PARA TIRAR SUAS DÚVIDAS

Entre os dias 3 e 7 de outubro, palestras online com informações detalhadas sobre os melhores destinos para uma experiência internacional serão distribuídas em diferentes horários para que interessados possam participar em tempo real do 1º Congresso Online Intercâmbio de Sucesso (intercambio desucesso.com.br).

As perguntas serão abertas a quem se inscrever no evento. Também haverá transmissão por redes sociais, e o conteúdo será gravado para que ninguém perca qualquer detalhe. Os custos de um intercâmbio também estão em pauta, já que o dinheiro costuma ser a principal barreira para os estudantes. O evento é gratuito.

gabriele.duarte@diariocatarinense.com.br



30 de agosto de 2016 | N° 18621 
DAVID COIMBRA

Discurso de Dilma é o símbolo de uma época

O discurso de Dilma no Senado, ontem pela manhã, foi a expressão verbal da profunda ruptura social que aflige o Brasil nos últimos anos.

Foi um discurso simbólico, não apenas por ser o último de uma era, mas por ter deixado expostos os dramas e as motivações dessa era.

Não por acaso, Dilma falou em misoginia, nos pobres, nos negros e nos gays. É a sovada estratégia de alegar que ela e seu governo são os garantidores da defesa dessas causas, que, na verdade, são do Estado, da sociedade e mais: de toda a humanidade. As questões das minorias não podem ser consideradas de viés ideológico e muito menos partidário. Se forem, as minorias estarão perdidas.

Não por acaso, Dilma se comparou a Getúlio Vargas, o autointitulado Pai dos Pobres.

Vargas, para exercer sua suposta paternidade sobre os pobres, foi o padrasto da democracia. Mas isso se deu nos anos 1930, época dos grandes ditadores salvadores da pátria: Mussolini, Hitler, Stálin, Tito, Mao, Perón, Franco, Salazar. Parte desse populismo foi derrotada na II Guerra Mundial, outra parte com o fim da Guerra Fria. Restou o populismo anacrônico da América Latina e da África subdesenvolvidas. O kirchnerismo na Argentina, o petismo no Brasil e o chavismo na Venezuela são os últimos exemplares desses movimentos. São movimentos que dizem combater ao lado dos pobres, enquanto se cevam na pobreza.

O Brasil, a Argentina e a Venezuela ainda se debatem de dor com o término desse tempo porque, de fato, é dolorido crescer. Mas é uma evolução, porque um povo que precisa de pais e salvadores, como as minorias que citei acima, está perdido.

Ao mesmo tempo, o populismo dos últimos governos gerou um assombroso subproduto: uma direita igualmente antiquada, saudosa da ditadura, que tem ojeriza aos homossexuais e confunde direitos humanos com leniência.

E assim é o Brasil de hoje: um país onde Cuba e Miami ainda representam a luta entre o comunismo e o capitalismo e onde ainda há pessoas que acreditam que, em política, trava-se a luta do Bem contra o Mal.

Dilma já é passado, os governos petistas já são passado, mas a sociedade brasileira continua fraturada. Nosso debate político continua pastoso e ideológico, superficial e pequeno, o brasileiro segue acreditando que o Estado está acima dele e não que ele, cidadão, faça parte do Estado e que ele, de acordo com seu comportamento, faça diferença naquilo que será o Estado.

Passamos por duas ditaduras, vencemos a inflação, estamos para superar o segundo impeachment de um presidente eleito. Haveremos de seguir em frente. O século 21 nos espera.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016



29 de agosto de 2016 | N° 18620 
CÍNTIA MOSCOVICH

PORTO ALEGRE: AME-A OU DEIXE-A

Quando parecia que o assunto já estava esgotado, a discussão sobre nossa identidade voltou à tona. Primeiro foi o artigo do publicitário Alfredo Fedrizzi que dizia que muita gente tem saído de Porto Alegre para buscar futuro em outras capitais. Depois, no encerramento das Olimpíadas, parecia que o Rio Grande do Sul nem existia no painel do Brasil que se mostrou.

O resumo dos debates é bem conhecido: Porto Alegre continua sendo uma cidade alegremente reacionária, com gente confortavelmente semiletrada, lideranças comoventemente simplórias, todo mundo achando equivocadamente que tem padrão de vida europeu – e nenhuma dessas conclusões, repita-se, é nova. Gente que conseguiu levantar a cabeça acima do padrão médio diz que os porto-alegrenses são mesmo como um balde de caranguejos: a pessoa está chegando à excelência, na beirinha do balde, quando a maioria, não suportando a conquista, também quer, tenta subir, empurra, puxa, até que toda a caranguejada vem balde abaixo. Esse ressentimento com o sucesso alheio também tem impedido, por mais de dois séculos, que tenhamos uma identidade clara, uma “cara” (daí, talvez, por que tenham nos “esquecido” no encerramento olímpico).

Claro, Porto Alegre tem méritos: aqui nasceu o Em Cena, o Fronteiras do Pensamento, a Oficina de Criação Literária da PUCRS, a Feira do Livro – e peço perdão às belas instituições que não nomeio. Mas como, caramba, o Multipalco do Theatro São Pedro ainda não foi concluído? Por que a sede da Ospa não progride? Como assim, a Fundação Iberê Camargo demitiu gente e vai abrir somente às sextas e aos sábados?

Para o resto do Brasil, Porto Alegre é meio atrasadinha e démodé – somos como um outlet, que vive de coleções passadas. Em verdade, nunca ultrapassamos o status de província e sempre ficamos devendo ao resto do país: a corte portuguesa se havia instalado no Rio – até um Jardim Botânico foi criado – e nós estávamos aqui a degolar uns aos outros. Bota atraso nisso.

O melhor seria parar com idealizações e lutar para que a cidade, que é nossa casa, ofereça melhores condições de vida. Por enquanto, Porto Alegre não é demais.



29 de agosto de 2016 | N° 18620 
DAVID COIMBRA

Como fazer sucesso intelectual

Estou finalizando um curso que ministrarei sobre “Como fazer sucesso intelectual”. Comecei a prepará-lo no ano passado e agora entrei nos arremates. Talvez me torne professor de Harvard. Fino. Segue um sumário.

Antes de tudo, lembre-se de que você precisa aproveitar as oportunidades. Eventos como os últimos crimes que chocaram os gaúchos, por exemplo, são perfeitos para você fazer sucesso. Porque lhe dão a deliciosa possibilidade de criticar a sociedade.

Criticar a sociedade pega bem. A sociedade adora ser criticada, porque as pessoas pensam que os criticados são os outros, não elas próprias.

Então, é só tomar um crime chocante e comparar com outro crime que não ganhou manchetes, só que neste a vítima tem de ser pobre, ou negra, ou gay, ou nordestina, sei lá. Aí você escreve: “A sociedade .......... não se importa com o que acontece com os ..........”. Na primeira linha hachurada, escreva o nome da sociedade que você quer criticar e que vai aplaudi-lo. Pode ser sociedade “brasileira”, ou “americana”, ou “congolesa”, ou “japonesa”, ou “argentina”, sei lá, todas as sociedades terão questões com quem é diferente, porque o ser humano tem medo do diferente. E, na segunda linha hachurada, escreva acerca da origem da vítima. Pode ser um tútsi que sofra com o preconceito dos hutus, ou xhosas que sofram com o preconceito dos zulus, ou negros que sofram com o preconceito dos brancos, ou pobres, ou gays, ou sei lá. O bom é que preconceitos existem a mancheias em todos os grupos humanos.

Outra: a sociedade retroalimenta-se de um mui útil sentimento de culpa judaico-cristão-burguês. Acuse-a, portanto! Mas incluindo-se na acusação. Grite: “Todos somos culpados!”. A sociedade experimentará o gozo do cilício e da autoimolação, e vai revirar os olhinhos de prazer e vai lamber a sola das botas que lhe pisam no pescoço: por conveniência, as suas.

Mais uma: separe uma questão lateral do tema do momento e trate-a como se fosse fundamental. Vai parecer que você vê o que ninguém vê. Melhor ainda: arroste previamente a sua coragem. Escreva, antes da tese: “Sei que vão me crucificar...”. Dá a impressão de que você está enfrentando alguém poderoso ou o povo ignaro, que você é um abnegado, disposto a se sacrificar pela causa da Justiça com jota maiúsculo.

Depois desse introito, escreva coisas como: “Para esses que dizem que Jesus é malvado, respondo que...”. Ninguém disse que Jesus é malvado, mas as pessoas vão pensar que você está se batendo heroicamente com os que dizem que Jesus é malvado e o festejarão: “É isso mesmo! É bem o que penso!”.

Um parêntese: (Nunca esqueça que as pessoas só aplaudem opiniões que concordam com as suas próprias opiniões. Quer dizer: elas só aplaudem a si mesmas).

Por fim, mas não menos importante: sempre podemos trabalhar em cima dos políticos. Nas democracias, as pessoas desprezam os políticos, porque eles em geral ficam ao nível delas mesmas. É repugnante. Um político, para ser amado, tem de ser um pai grave, um homem que olha de cima para baixo. Em resumo: um ditador. Ou um candidato a. No caso do “candidato a”, refiro-me, naturalmente, ao populista. O populista é uma mescla de pai provedor e amante canalha. As pessoas adoram quando são enganadas pelo populista. Elas sorriem e balançam a cabeça:

– Que malandro...

Já os políticos que caminham na planície podem e devem ser agradavelmente massacrados e insultados quando você estiver passando por alguma dificuldade. Isso faz bem, porque tira de você a responsabilidade por seus próprios problemas. Logo, você, que pretende fazer sucesso intelectual, jamais se esqueça de açoitar os políticos, e nunca faça a menor ponderação. Não afirme que ele está errado; afirme que ele é uma besta. Eis um resumo do meu curso. Logo estará concluído. Inscrições em Harvard. Prepare seus dólares.


29 de agosto de 2016 | N° 18620 
L. F. VERISSIMO

Ri, palhaço

Depois da provável cassação da Dilma pelo Senado, ainda falta um ato para que se possa dizer que la commedia é finita: a absolvição do Eduardo Cunha pelo mesmo Senado. Nossa situação é como a ópera Pagliacci, uma tragicomédia, burlesca e triste ao mesmo tempo. E acaba mal. Há dias, li numa página interna de um grande jornal de São Paulo que o Temer está recorrendo às mesmas ginásticas fiscais que podem condenar a Dilma. O fato mereceria um destaque maior, nem que fosse só pela ironia, mas não mereceu nem uma chamada na primeira página do próprio jornal e não foi mais mencionado em lugar algum.

A gente admira o justiceiro Sergio Moro, mas acha perigoso alguém ter tanto poder assim, ainda mais depois da sua espantosa declaração de que provas ilícitas são admissíveis se colhidas de boa-fé, inaugurando uma novidade na nossa jurisprudência, a boa-fé presumida. Mas é bravo ter que ouvir denúncias contra o risco de prepotência dos investigadores da Lava-Jato da boca do ministro do Supremo Gilmar Mendes, o mesmo que ameaçou chamar o então presidente Lula “às falas” por um grampo no seu escritório que nunca existiu, e ficou quase um ano com um importante processo na sua gaveta sem dar satisfação a ninguém. As óperas também costumam ter figuras sombrias que se esgueiram (grande palavra) em cena.

O Eduardo Cunha pode ganhar mais tempo antes de ser julgado, tempo para o corporativismo aflorar e os senadores se darem conta do que estão fazendo, punindo o homem que, afinal, é o herói do impeachment. Foi dele que partiu o processo que está chegando ao seu fim previsível agora. Pela lógica destes dias, depois da cassação da Dilma, o passo seguinte óbvio seria condecorarem o Eduardo Cunha. Manifestantes: às ruas para pedir justiça para Eduardo Cunha!

Contam que um pai levou um filho para ver uma ópera. O garoto não estava entendendo nada, chateou-se e perguntou ao pai quando a ópera acabaria. E ouviu do pai uma lição que lhe serviria por toda a vida:

– Só termina quando a gorda cantar.

Nas óperas, sempre há uma cantora gorda que só canta uma ária. Enquanto ela não cantar, a ópera não termina.

Não há nenhuma cantora gorda no nosso futuro, leitor. Enquanto ela não chegar, evite olhar-se no espelho e descobrir que, nesta ópera, o palhaço somos nós.

domingo, 28 de agosto de 2016




27 de agosto de 2016 | N° 18619 
MARTHA MEDEIROS

Falta de estoque

Preciso de aconchego e prazer, e o prazer vem do que é visual, tátil, perfumado, saboroso, sonoro. Sem o uso lascivo dos sentidos, que graça tem?

Outro dia quis dar de presente para um amigo um álbum com algumas fotos que sei que ele iria gostar. Não um álbum digitalizado, mas daqueles em que colocamos as fotos nos compartimentos plastificados. Que via-crúcis. A maioria dos álbuns que encontrei nas lojas era de bebês e de noivas. Por fim, encontrei um como eu queria, de capa lisa e com a dimensão desejada. Quando ele recebeu, abriu um sorriso daqueles: disse que fazia tempo que não era surpreendido, e acreditei. Quem ainda se dá o trabalho de revelar fotos?

Ao mesmo tempo, soube de uma livraria em Paris que funciona numa sala onde há apenas uma Espresso Book Machine – uma máquina que imprime livros na hora. Você entra, escolhe o que deseja num cardápio com cerca de 5 mil títulos e em poucos minutos leva para casa seu produto. Como tirar uma Xerox numa casa lotérica.

Os álbuns de fotos estão rareando no mercado. Os livros impressos ainda existem, mas começam a ser automatizados. Discos também ainda existem, mesmo a gente baixando música direto de aplicativos. Cadernos, agendas, revistas, canetas, lápis: tudo em vias de virar quinquilharia inútil, objetos de culto, no máximo.

O mundo físico está se diluindo. E estoque é palavra que cairá em desuso rapidinho.

Observo minha casa e não imagino as paredes sem estarem tomadas por livros até o teto, as estantes entupidas de CDs, as dezenas de canetas enfiadas em potes, minha coleção de cartões-postais, os móveis amparando objetos trazidos de viagens, vários quadros pendurados, o chão forrado de tapetes diversos, os sofás cobertos de almofadas, lenhas e nós de pinho aguardando a hora de arder dentro da lareira. Um armazém doméstico.

Não guardo papelada inútil e rancores antigos, aprendi a deletar rapidinho tudo que é peso morto – para alguma coisa tinha que servir essa tal de maturidade. Mas preciso de aconchego e prazer, e o prazer vem do que é visual, tátil, perfumado, saboroso, sonoro. Sem o uso lascivo dos sentidos, que graça tem?

Entrar numa livraria onde só existe uma impressora me parece a descrição de um pesadelo. Digo o mesmo de uma casa onde tudo é monocromático, futurista, com muitos espaços vazios sem um cisco à vista, os móveis apenas dois ou três. Afinal, é um hospital ou um lar?

As pessoas andam meio piradas, e acho que essa assepsia só piora o quadro. Não limpem tanto a área, deixem as coisas se amontoarem: pela manutenção das prateleiras, ao menos. Quero poder procurar, furungar e encontrar o que quero, não apenas dar um toque numa tela. É o meu singelo manifesto contra a higienização dos nossos hábitos.



27 de agosto de 2016 | N° 18619 
CARPINEJAR

Até Tóquio

Nunca subestime o poder de argumentação.

Se conversar não convence, pelo menos cansa o outro lado. O outro lado concordará comigo mais para dormir de uma vez por todas do que porque decidiu me apoiar.

Não me interessa ganhar uma discussão, só não quero perdê-la.

Quando estou errado, não deixo de defender os meus argumentos. Posso sofrer uma goleada, mas não desisto de buscar o gol de honra.

Jamais me entrego, jamais entrego os meus amigos. Amizade é a minha máfia. Não confunda o egoísmo com lealdade, é uma questão de preservação pessoal. Caso denunciar os amigos, sacrificarei os futuros álibis.

Homem ilhado é homem vulnerável.

Nego até depois do fim. Não duvido de que a verdade não fique com compaixão da minha forjada coerência. Não tremo de raiva, não grito, não altero o tom de voz. Não consulto o relógio para indicar ansiedade. Olho nos olhos para exalar confiança.

Nenhum mal é definitivo. O importante é não cair nocauteado pela confissão e permitir que o resultado seja fruto da subjetividade dos jurados.

Se você errar o nome da mulher, por exemplo, ainda há conserto. Mesmo que seja na cama. Confie em mim. Aliás, confie em si.

É apenas elogiar o ato falho. Criar um manifesto em defesa do ato falho. Inverter a situação. Nada melhor do que uma torção psicanalítica para evitar fraturas amorosas.

– Eu não sou Priscila. Priscila é o nome de sua ex! – resmunga a esposa, já chorando.

– Eu lhe chamei de Priscila? Que bom!

– Que bom?

– Que bom, amor. Eu estava esperando este momento.

– Tá de sacanagem comigo, troca meu nome no meio do sexo e acha isso normal? Você é um doente! Um doente!

– Não, agora é que estou curado. Não preciso mais cuidar do que falo. Vivia me censurando, me inibindo, com medo de lhe magoar. O ato falho prova que tenho confiança em você, que me permito errar e não lhe acho mais fraca, mais tola, mais bobinha, que você amadureceu para mim e demonstra condições de segurar a barra nos momentos difíceis.

– Você vem me enxergando diferente?

– Sim, amor, muito mais forte. Que orgulho de você. Eu a admiro bem mais hoje.

– Mesmo?

– E também prova que não estou mais me defendendo ou pensando naquilo que preciso dizer. Não me controlo na sua frente. Eu me soltei, eu me libertei do passado, posso amar como nunca. O ato falho é um exorcismo, não devo mais nada para Priscila.

– Mas, amor, já estamos juntos há quatro anos?

– Pois é, amor, o ato falho costuma acontecer a cada quatro anos, como a Olimpíada.

– Tudo bem, dessa vez passa, mas não haverá perdão para uma próxima.



27 de agosto de 2016 | N° 18619 
ANTONIO PRATA

A DÉCIMA VEZ QUE A GENTE ASSISTE

“Vamos assistir o quê?”, ela pergunta, se aboletando no sofá. É sexta à noite, as crianças estão na casa da avó, não temos nenhum compromisso social, nenhuma pendência profissional, chove lá fora e aqui, caro Lobão, não faz tanto frio, pois estamos debaixo de um cobertor; à minha frente uma TV gigante, na minha mão um controle pequenininho e a poucos cliques, via Apple TV ou Net- flix, praticamente todos os filmes ou programas televisivos já produzidos desde a invenção do cinematógrafo. Parece a abertura de uma noite perfeita. Parece.

“Um Woody Allen?”, proponho. “De novo? Vamos ver alguma coisa diferente. Documentário?” Colocamos “Documentário” na Apple TV e vamos escrutinando as capinhas. Muita coisa parece boa, algumas parecem ótimas, mas por que ficar com o ótimo se podemos chegar ao excelente?

Depois de uns 20 minutos, conseguimos fechar em três docs: um sobre as prévias americanas, um sobre maus- tratos aos bichos no Sea World, um sobre os Rolling Stones. Estamos quase tirando um cara ou coroa entre as orcas e o Keith Richards, quando... “E série, hein? Faz tempo que a gente não tem uma série pra chamar de nossa. Lembra dos tempos de Mad men, Breaking bad, Sopranos? Vamos ver se a gente acha alguma coisa?” Ela assente, receosa. Coloco os três documentários na “Lista de desejos” e pulamos pra “Séries”.

“Séries” é sempre um problema. Nunca sabemos se devemos preencher algumas lacunas da nossa formação e assistir a The wire ou The west wing ou se devemos tentar acompanhar algum dos lançamentos mais recentes: Stranger things? Horace and Pete? Ficamos clicando nas capinhas, lendo sinopses e mandando coisas pra “Lista de desejos”. O tempo passa, “ele foge: irreversivelmente o tempo foge”, escreveu Virgílio, já é quase meia-noite e a lembrança do poeta latino me sugere que, nas águas turbulentas das crises, é sempre prudente atracar no porto seguro dos “Clássicos”.

“Billy Wilder?” “A gente já viu todos.” “Godard?” “Pelo amor de Deus, Antonio, a ideia é se divertir!” Truffaut bate na trave. Por uns momentos chegamos a comemorar a vitória do Bergman, mas o peso daqueles gigantes vai, furtivamente, criando uma ânsia por leveza. “Comédia!”, eu sugiro. “Jerry Lewis?! Eu nunca vi Jerry Lewis depois de adulto, dizem que é muito bom.” “Ah, não! A gente tem todos os filmes do mundo e vai escolher justo um que passa na Sessão da Tarde?!” “Woody Allen, então?” “De novo???”

Às três da manhã, já não há mais método na loucura. Vamos de um documentário sobre batatas fritas pra Oito e meio, de Goonies pra Luzes da ribalta, d’O dragão da maldade contra o santo guerreiro pra Caverna do dragão. Às cinco e cinquenta e nove, a última gota de esperança é finalmente evaporada pelo primeiro raio de sol. Desligamos a TV, viramos pra janela. O céu fica roxo, depois laranja, depois amarelo. “E aí, que que cê achou?”, pergunto.

 “A fotografia é linda, mas o roteiro é péssimo.” “Previsível. Parecia que o sol ia nascer, daí começou a nascer e no fim, nasceu mesmo.” “É. Sem contar que é a 10ª vez que a gente assiste.” Dormimos no sofá. Acordo poucas horas depois com o mais novgolpeando minha cabeça com uma Peppa inflável e gritando “Babai!”, “Babai!”, “Babai!”.



27 de agosto de 2016 | N° 18619
DAVID COIMBRA

A sociedade aprendeu a banir um governo que a ponha em risco

Há três anos, a sociedade brasileira aprendeu que pode virar multidão. Antes disso, as mobilizações de massa eram exclusividade das esquerdas, sempre orgânicas e coordenadas. Levantes realmente espontâneos no país, só em grandes causas. E ainda assim bem específicas: as Diretas Já em 1984, o Fora Collor nos anos 1990. Ou, é claro, em eventos esportivos ou comoções populares: as mortes inesperadas de Tancredo e Senna, o suicídio de Getúlio.

O Brasil experimentou uma rebelião popular genuína, de baixo para cima, em 1904, na Revolta da Vacina. Foi algo que explodiu do peito do povo, tão poderoso quanto equivocado: a vacina contra a qual a população se rebelava a salvaria da doença e da mortandade.

O povo, às vezes, é bobo.

Três anos atrás, naquele mesmo junho em que se disputava a Copa das Confederações no Brasil, deu-se um movimento sem ideologia e genuinamente popular. As pessoas gritavam, nas manifestações:

– Sem partido! Sem partido!

E não sabiam contra o que, exatamente, protestavam. Elas protestavam “contra tudo que está aí”.

Tratava-se, na verdade, de um sentimento prévio: os 10 anos de governo do PT fizeram um enorme mal à sociedade brasileira, devido ao seu caráter excludente. As explosões daquele junho eram explosões da classe média acuada pelo sectarismo. Era insuportável ter que pagar a conta e, ao mesmo tempo, ser acusada de elite branca insensível.

Tenho dito, e repito, que foi mais pela revolta contra o sectarismo do que pela revolta contra a corrupção que o Brasil se ergueu contra o governo do PT. Corrupção sempre houve; tamanha arrogância, jamais.

O Brasil conseguiu tirar o PT do poder, e suspirou de alívio. Faltam agora apenas mais algumas formalidades.

Isso não quer dizer que qualquer outro governo ruim será corrido dos palácios e que o impeachment vai se transformar em norma. Não. É preciso haver igual prepotência e sede de poder. Ou uma incapacidade tal, que coloque a sociedade em risco.

Assim, chego ao governo Sartori.

Sartori não é incompetente nem mal-intencionado. Não é arrogante ou sectário.

Sartori é equivocado.

Sartori é aquele médico que, para combater a doença, deixa o paciente se sentindo tão mal, que ele prefere a morte.

Faça o exercício clássico e comezinho da comparação com o seu orçamento doméstico: se você gasta mais do que ganha e não tem de onde tirar novos recursos, terá, necessariamente, de cortar despesas. Mas você não deixa de comer para economizar, porque sabe que, se fizer isso, morrerá de fome. Sartori chegou à mesma conclusão: terá de diminuir o que o Estado gasta. Só que, em nome da contenção, ele elimina tudo, inclusive o essencial.

O essencial é segurança pública. Educação é fundamental, saúde é importantíssima; segurança pública e justiça são essenciais.

Sartori, ao parcelar os salários dos servidores, ao fechar postos de polícia, ao deixar os carros sem combustível, ao não contratar mais policiais, ao permitir que delegacias fechem na hora do jantar por falta de pessoal, ao anunciar sempre e sempre que não tem como fazer melhor, Sartori atingiu o ponto crítico que citei antes: colocou a sociedade em risco.

Cabe, nesse ponto, uma ressalva que alivia o peso da responsabilidade de Sartori. A Justiça gaúcha, excessivamente garantista, tem sua culpa. O chamado “prende e solta” passa um recado ao bandido. Se você for preso 60 vezes, significa que 60 vezes será solto. A punição já não faz mais diferença alguma.

Para arrematar, há a cultura da vitimização, do coitadismo. O sujeito acredita que rouba porque TEM que roubar. Que não há alternativa. Ele fez sua parte nascendo. Depois disso, a sociedade é que deve tomar providências para que ele viva bem e em conforto, ou ele sairá por aí atirando em cabeças incautas.

A atitude derrotista do governo, o garantismo da Justiça e a cultura da vitimização geram uma sensação de segurança. Nos bandidos. Eles se sentem tão tranquilos, tão intocáveis, que não hesitam em atirar em um pai na frente do seu filho no começo da noite nem em uma mãe diante da sua filha no fim da tarde. Entre matar ou não matar, eles escolhem matar. Por quê? Porque é mais fácil: é só puxar o gatilho e, pronto, está eliminada aquela pessoa que o irritou por ter tentado defender o filho ou porque se atrapalhou ao tirar o cinto de segurança. Está eliminado mais um integrante daquela sociedade malvada que fez com ele o que ele é.

Volto a dizer, como tenho dito há meses: a sociedade está se sentindo em perigo. A mesma sociedade que, nos últimos três anos, aprendeu que não depende de partido político, ONG ou sindicato para se levantar. Aprendeu que, se quiser, tem força para banir um governo espúrio. Ou um governo que a ameace. Cuidado, Sartori. Faça algo, e rápido e com força.

Antes que seja tarde.


27 de agosto de 2016 | N° 18619 
L.F. VERISSIMO

O breakfast

O sucesso dos Estados Unidos na Olimpíada se deve, antes de mais nada, ao breakfast. Os americanos são o que são porque não quebram o jejum, simplesmente, ao acordar. Estraçalham o jejum. Todas as conquistas americanas, inclusive as esportivas, se devem ao fato da sua civilização ser a primeira na história a conseguir comer ovos, bacon e panquecas com melado de manhã. Os ingleses comiam peixe frito, por isso tinham perdido seu império americano. 

Os índios comiam nacos de búfalo. Os mexicanos, suas ralas tortilhas com pimenta. Nenhum deles poderia deter a força do leite integral. Os rifles de repetição ajudaram, mas os verdadeiros conquistadores do oeste americano foram os grandes breakfasts. Os Estados Unidos são a prova inquestionável de que caloria é destino.

Os Estados Unidos passaram boa parte da sua história na ilusão de que eram uma criação do iluminismo europeu, um produto não do crasso mercantilismo ou do feio imperialismo, mas das melhores intenções da Europa. Desde sua origem como nação, existe essa consciência da América como uma experiência social, uma depuração dos ideais democráticos que o velho mundo, viciado, não deixava crescer. 

Todos os mitos que têm formado a autoestima americana desde então – o da terra da oportunidade, o do cadinho de raças, o do altruísmo na conquista e tolerância na vitória – partem dessa primeira ideia da América como um novo começo, uma Europa regenerada, salva dos pecados da História. O breakfast com bacon e melado juntos é um símbolo dessa ruptura.

Dos setenta e poucos americanos que se reuniram em Filadélfia para debater a primeira Constituição democrática da História, a grande maioria era de homens de negócio, proprietários rurais e donos de escravos, o que não os impediu de escrever a Bill of Rights, que definia para sempre os direitos iguais de todos os cidadãos e seria a inspiração para a Declaração Universal dos Direitos do Homem. É verdade que passaram-se quase 170 anos antes que os direitos “autoevidentes” da Bill of Rights fossem assegurados a todos os americanos, independentemente de raça, por uma interpretação algo tardia da Suprema Corte. 

E que questões como o condicionamento social do direito à propriedade não foram sequer tocados na Constituição americana, cuidadosamente redigida para proteger a aristocracia rural de qualquer desafio aos seus direitos divinos. E que até hoje, embora a aristocracia rural americana tenha seguido o caminho da landed gentry inglesa para a irrelevância, a questão da propriedade nunca entrou no debate político dos Estados Unidos. Mas a Bill of Rights está lá, como uma promessa.

Uma promessa de quê? De uma sociedade inédita como seu breakfast e virtuosa como seus primeiros sonhos. No final de O grande Gatsby, Fitzgerald evoca o sonhado país novo que se enredaria nas suas intenções e contradições. Descreve a costa leste americana, “a fronte verde e fresca do novo mundo”. 

Suas árvores desaparecidas “um dia tinham se oferecido com sussurros ao último e maior de todos os sonhos humanos: por um momento transitório encantado, o homem deve ter prendido a respiração na presença deste continente, compelido a uma apreciação estética que ele nem compreendia ou desejava, cara a cara pela última vez na História com algo comensurável à sua capacidade de se maravilhar”. Para Fitzgerald, o “futuro orgástico” perseguido por Gatsby e as promessas da época tinham se evanescido “na vasta escuridão além da cidade, onde os campos soturnos da República se estendem sob a noite”. E o momento encantado não voltaria mais.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016


26 de agosto de 2016 | N° 18618
CAMPO ABERTO | Joana Colussi

COM OLHOS NA EXPOINTER E EM BRASÍLIA


A 39ª Expointer será realizada exatamente nos dias em que sessão histórica em Brasília define quem comandará o Brasil nos próximos anos. Embora a feira agropecuária tenha no seu DNA a excelência genética de animais e a tecnologia de máquinas e equipamentos, será impossível disassociá-la do momento político e econômico vivido pelo país. Neste sábado, na abertura oficial do evento, nada menos do que quatro ministros do governo interino de Michel Temer estarão na cerimônia que, neste ano, irá ocorrer no dia em que os portões abrem ao público e não mais junto ao desfile dos campeões, quase no final da feira.

Apesar de o desempenho da Expointer ser uma incógnita, discursos de representantes do setor trazem um tom mais otimista em relação à edição do ano passado.

– Pelo menos, a situação já parou de piorar. O desemprego no setor estabilizou. O ânimo hoje é outro – indica Claudio Bier, presidente do Sindicato das Indústrias de Máquinas e Implementos Agrícolas (Simers).

A possibilidade de o país ingressar em um período menos conturbado em Brasília entra nos cálculos da perspectiva de recuperação do mercado de máquinas – prevista para os próximos meses.

– Estabilidade política é sempre favorável à tomada de decisões que signifiquem compromissos de longo prazo – diz a vice-presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Ana Helena de Andrade, referindo-se aos investimentos em máquinas e equipamentos.

Para o secretário estadual da Agricultura, Ernani Polo, os sinais de retomada da economia brasileira serão refletidos nesta Expointer, não necessariamente de forma imediata durante a feira:

– Os negócios são importantes e necessários. Mas sabemos que muitos poderão começar agora e se concretizar mais para frente, com um cenário mais nítido – avalia Polo.

NÃO FALTARÃO MINISTROS NO PRIMEIRO FIM DE SEMANA DA EXPOINTER. QUATRO JÁ CONFIRMARAM PRESENÇA: BLAIRO MAGGI, DA AGRICULTURA, OSMAR TERRA, DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL, RONALDO NOGUEIRA, DO TRABALHO, E SÉRGIO ETCHEGOYEN, DA DEFESA. SÃO ESPERADOS AINDA OS MINISTROS DA AGRICULTURA DA ARGENTINA E DO URUGUAI.


26 de agosto de 2016 | N° 18618 
NÍLSON SOUZA

OU ISTO OU AQUILO


A história do Brasil é uma história de controvérsias.

Desde o começo: Cabral desembarcou na Bahia por engano ou sabia onde estava pisando? Foi descobrimento por parte dos portugueses ou invasão de uma terra que já era habitada por milhares de índios? Navegadores espanhóis que pisaram na região onde viria a ser o Ceará, três meses antes dos portugueses, não seriam os verdadeiros descobridores?

Brasil Colônia: Portugal levou nossa madeira, nosso açúcar e nosso ouro – e nos mandou em troca a família real e seus agregados. Foi uma troca justa? Independência: Dom Pedro I teria mesmo gritado “Independência ou Morte” ou simplesmente pedido papel?

Brasil Império: Maioridade ou golpe? A Constituição da época dizia que a maioridade do imperador ocorreria aos 21 anos, um ato adicional casuísta antecipou a emancipação para 18 anos, mas o grupo encastelado no poder não podia esperar e acabou dando um jeitinho para o adolescente se tornar monarca aos 14 anos.

Primeira República: Deodoro da Fonseca comanda o movimento antimonarquista e toma o poder. Revolução, conspiração ou golpe?

Era Vargas: Golpe? Governo provisório? Ditadura? Redemocratização? Bota o retrato do velho no mesmo lugar.

Regime militar: Renúncia ou esperteza? Legalidade ou atropelo? Parlamentarismo ou faz de conta? Golpe ou revolução? Ditadura ou ditabranda?

Redemocratização: Tancredo e a diverticulite. Sarney e seus fiscais. Collor e seus PCs Farias. Itamar e a volta do Fusca. FHC e os aposentados. Lula e nunca antes na história deste país. Só controvérsias.

E agora, dona Dilma, o discurso da mandioca, crises intermináveis e o interino que labuta para se tornar permanente.

Impeachment ou golpe?

Novos atores e novas atrizes, mas o filme é tão velho, que parece já ter mais de 500 anos. E a plateia se mantém dividida. Somos assim, controversos por natureza.

E depois alguém ainda vai dizer que a culpa é do mês de agosto.


26 de agosto de 2016 | N° 18618 
DAVID COIMBRA

O fim do governo Sartori

25 de agosto de 2016. Você, gaúcho, lembre-se dessa data. Nesse dia, às seis horas da tarde, uma mãe foi assassinada com um tiro na cabeça, em frente à filha, na porta de uma escola em Porto Alegre.

Nesse mesmo dia, nessa mesma hora, o governo de José Ivo Sartori acabou. Ou, pelo menos, o tipo de governo que ele vinha exercendo até então.

Trato daquela gestão de Sartori no passado, porque a morte dessa mãe é um marco. Somada a outras tantas, de igual natureza, representa a ultrapassagem de um limite. Não há mais como suportar. Agora chega.

A segurança pública é a principal tarefa do Estado. Não das unidades da federação; do Estado conceitual, de qualquer Estado, em qualquer parte do mundo. O Estado foi criado em primeiro lugar para isto: para dar segurança e justiça ao cidadão. O Estado pode sonegar até educação; segurança, não. Se o Estado não fornece segurança, não tem mais razão de ser.

Todos sabem da penúria das finanças do Rio Grande do Sul e está bem posto que a culpa não é de Sartori. Mas Sartori tem responsabilidade, sim, pela forma como está enfrentando o problema. Principalmente no que é o principal: a segurança pública. Ele diz que não tem como colocar um policial em cada esquina. É verdade. Mas segurança pública não se faz apenas com a presença física da polícia; faz-se com a ideia de que a polícia estará presente e atuante sempre que houver necessidade.

O crime não é reprimido só pela punição, mas pelo sentimento de que haverá punição se o crime for cometido.

O discurso do governador e sua postura derrotista, de fracasso anunciado, são responsáveis diretos pela situação da segurança pública no Rio Grande do Sul.

Um jovem com uma arma na mão, em Porto Alegre, pode fazer o que quiser. Ele se sente dono da cidade, porque ele comete um pequeno crime e não tem consequência. Aí ele ousa um pouco mais, e nada lhe acontece. Então, ele se enche de confiança, ele toma o que bem entender, a qualquer hora, de quem quer que seja, ele é o senhor dos destinos das outras pessoas, ele decide se uma mãe de 44 anos deve ou não viver. Ele é maior do que o Estado, porque o Estado não apenas é omisso: o Estado avisou que será omisso.

Sartori é um homem bom e discreto. Gosta de trabalhar em silêncio. O que se exige dele agora é o contrário. Exigem-se alarde, urgência e atitude. Sartori pode fazer isso. Ele foi eleito, tem legitimidade para convocar as forças da sociedade para a ação imediata.

Sartori tem de fazer alguma coisa já. Hoje. Dia 26 de agosto de 2016. É hora de ele começar um novo governo. Ou ele não terá mais como governar.


26 de agosto de 2016 | N° 18618 
MÁRIO CORSO

Bacon clandestino


Houve um aumento expressivo nas apreensões de bacon. Talvez só comparado ao pico de consumo dos anos 2047 a 2049, ainda na primeira década da proibição da carne, diz com preocupação o secretário nacional de combate ao colesterol. A questão não é só essa, emenda ele, as pesquisas indicam que o bacon é a porta de entrada para o consumo de outras fontes proteicas animais mais perigosas, como salame, presunto, paio, copa, linguiça, ou coisas ainda piores, como a morcilha e a costelinha defumada.

O Departamento de Polícia Vegetariana afirma tratar-se de contrabando, provavelmente do Uruguai. O país vizinho foi um dos últimos do planeta a aderir ao Pacto Verde, proposta da ONU que proíbe o uso de animais para consumo humano e lançou as bases da Novalimentação.

O Uruguai, junto com a Argentina, resistiu à medida e ambos sofreram anos de embargo comercial. Foram dobrados pela falência de suas economias. Porém, hoje fazem vista grossa às fazendas clandestinas que criam e assassinam animais para consumo. O pampa é muito vasto para ser totalmente perscrutado pelos batalhões do Exército Vegano da ONU, os chamados capacetes verdes. Nem com a ajuda da Brigada Internacional dos Veterinários Budistas, conseguiram sucesso.

Hábitos culturais locais, os antigos e primitivos rituais de churrasco, eram muito populares nesses países, o que dificulta a implementação da alimentação sem sofrimento animal. Infelizmente, é lenta a erradicação das formas arcaicas de sacrifício. O mais lamentável é que criou-se uma oposição política carnívora, fazendo desse consumo uma resistência ao governo e à Novalimentação. Sem dúvida, isso está atrapalhando os planos do Mundo sem Doença, como imaginado pelos Médicos Veganos sem Fronteiras, que já conseguiram a supressão do sal e do açúcar do nosso cardápio.

O fato é que nossas autoridades devem admitir que os carnívoros seguem agindo e que nossa legislação é leniente contra essas transgressões. Contrabandistas enriquecem e corrompem agentes da lei, inclusive com o próprio produto. A Agência de Vigilância Antiespecista Secreta descobriu que um quilo de pernil ou uma manta de charque abre qualquer porta. Por sorte, existe um projeto no Senado para aumentar as multas para o tráfico e consumo de carne e transformá-lo em crime inafiançável.

Para piorar, acrescenta o secretário, existe a suspeita de que esses cadáveres sejam servidos inclusive para crianças, que muitas vezes ingerem sem saber o que estão consumindo. Cria-se a figura do carnívoro passivo, pessoas que estão sob o mesmo teto ou tutela do carnívoro. Esses incautos comem, por exemplo, uma aparentemente inofensiva sopa sem saber o que realmente está oculto entre os ingredientes. Definitivamente, o calendário do projeto de um planeta sem males está atrasado.