MARCELO COELHO
Mocinhos e bandidos
O filme de José Eduardo Belmonte sobre a ocupação de favelas enfrenta um mundo de contradições
"Alemão", de José Eduardo Belmonte, é um filme que merece ser visto e revisto. Fiquei com uma impressão errada da história quando vi o trailer: dava-se tanto destaque à presença de Antonio Fagundes no elenco (como o delegado que organizava a célebre ocupação do complexo de favelas carioca), que o compromisso em retratar o "mundo real" saía um pouco prejudicado.
O problema volta e meia acontece quando se recorre a atores muito famosos da televisão. Por melhores que sejam, fica esquisito quando encarnam personagens reais. Lembro-me de um filme sobre Canudos, em que Antônio Conselheiro era ninguém menos do que José Wilker.
Arranjaram uma barba preta para ele, que parecia feita com um escovão de piaçava. Podia ser o Antônio Conselheiro mais perfeito do mundo, mas como espectador eu não conseguia deixar de perguntar: "Mas o que é que o José Wilker está fazendo de batina e barba postiça?".
De todo modo, Antonio Fagundes nem aparece tanto assim no filme. Numa notável mistura entre realidade e ficção, o roteiro situa o delegado procurando controlar, da distância do gabinete, uma investida perigosíssima contra Playboy, o chefe do tráfico da favela, vivido por Cauã Reymond.
Enquanto isso, cinco policiais infiltrados na favela têm de sobreviver escondidos, por longos dias, até o momento em que o Exército finalmente possa invadir o império de Playboy. O tráfico já conhece a identidade desses informantes; todos os recursos são utilizados para expulsá-los do esconderijo. Já nessa situação se pode ver muito da arte do roteirista.
Em vez de mostrar o traficante cercado pela polícia, "Alemão" mostra os policiais cercados pelos traficantes. A salvação só pode vir "do céu", o que se representa pelo ruído dos helicópteros sobrevoando o morro.
Playboy aparece quase sempre ao ar livre, tomando banho de piscina no terraço de seu "apartamento de cobertura" em pleno coração da favela. As pesadas correntes de ouro que --como seus comparsas-- carrega consigo simbolizam ao mesmo tempo os seus hábitos de ostentação e o fato de estar "com a corda no pescoço", como se diz.
Outra corrente de ouro --essa bem modesta e fininha-- passará das mãos de um jovem policial para outros personagens, em momentos de grande impacto emocional da história. Mas o núcleo dramático do filme está nos conflitos, nas diferenças extremas de personalidade, nas alternâncias de medo e inatividade que marcam o convívio dos policiais escondidos.
Tem-se tudo, aqui, para fazer um excelente filme com baixo orçamento, misturando suspense e drama psicológico. "Alemão" atinge esse objetivo com pulso e velocidade.
Em vez de considerar os policiais em bloco, o roteiro acaba distinguindo tipos sociais e psicológicos muito distintos. Cada um desconfia dos outros: quem terá denunciado sua identidade ao tráfico?
Um dos informantes é garoto mestiço da própria favela. Como não pensar que foi ele quem se aliou, no sufoco, ao tráfico? O outro é gorducho, medroso e dissimulado. Um terceiro é inexperiente, imbuído de ideais e cultura universitária. O quarto é um "tira" da velha guarda, capaz de bater e fuzilar sem hesitação. O quinto, mais sedutor, aposta em táticas de longo prazo.
O problema é que, numa situação dessas, cada um desses estilos pode se revelar o mais adequado num determinado momento, e um desastre total minutos depois. "Alemão" joga magistralmente com essa ambiguidade.
Há uma ambiguidade maior cercando o filme, entretanto, que talvez seja mais difícil de resolver.
Pouca gente há de discordar que as UPPs foram uma coisa muito boa. "Alemão", assim como o belíssimo documentário "Morro dos Prazeres", de Maria Augusta Ramos, não tem como não deixar de mostrar o quanto de necessário, de correto e de heroico foi feito para tirar as comunidades do domínio do tráfico e das milícias.
Fazer um filme "a favor", entretanto, nunca é fácil. O caso Amarildo surgiu exatamente na época em que "Morro dos Prazeres" era lançado em São Paulo. "Alemão" termina com um discurso de Lula, anunciando a vitória sobre o tráfico na favela. O filme já devia estar pronto quando ocorreram as manifestações de junho e os episódios de violência policial que as acompanharam. Cuidou-se, assim, de acrescentar cenas da repressão enquanto passam os créditos do filme.
Hoje, a maré da opinião pública já virou novamente. Os black blocs atraem a antipatia que, meses atrás, se voltava contra os excessos da PM e as insensibilidades de Sérgio Cabral. O tráfico volta a atacar no Complexo do Alemão.
Esses filmes são muito bons. Mas a realidade que retratam certamente tem a forma de um seriado --que está longe de ter chegado à sua última temporada.
coelhofsp@uol.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário