ANTONIO
PRATA
Abaixo, a
ironia
Volto
ao tema para que não haja riscos de reforçar ideias que tentei ridicularizar
Domingo
passado, escrevi aqui uma crônica em que satirizava o discurso mais raivoso da
direita brasileira. Muita gente não entendeu: alguns se chocaram pensando que
eu de fato acreditava que o problema do país era a suposta supremacia de
negros, homossexuais, feministas, índios e o "poderosíssimo lobby dos
antropólogos"; outros me chocaram, cumprimentando-me pela coragem (!) de
apontar os verdadeiros culpados por nosso atraso. Volto ao tema para que não
haja risco algum de eu estar reforçando as ideias nefastas que tentei
ridicularizar.
Uma
sátira é uma caricatura. Escolhemos certos traços de uma obra e produzimos
outra, exagerando tais características. Narizes aparecem desproporcionalmente
grandes, orelhas podem ser maiores que a cabeça, um bigode talvez chegue até o
chão. É como se puséssemos uma lupa nos defeitos do original, a fim de
expô-los.
Na
crônica de domingo, achei que havia carregado o bastante nas tintas retrógradas
para que a sátira ficasse evidente. Descrevi um quadro que, pensava eu, só
poderia ser pintado por um paranoico delirante. No país bisonho do meu texto,
José Maria Marin e o pastor Marco Feliciano eram de esquerda, os brancos
estavam escanteados por negros, que ocupavam a direção das empresas, as mesas
do Fasano e os assentos de primeira classe dos aviões.
O
Brasil (segundo maior exportador de soja do mundo) não era, na crônica, uma
potência agrícola, por culpa das reservas indígenas. No fim, me levantava
contra "as bichas" e "o crioléu". O texto não estava
suficientemente descolado da realidade para que todos percebessem a
impossibilidade de ser literal?
Talvez,
infelizmente, não: fui menos grosseiro, violento e delirante na sátira do que
muitos têm sido a sério. Poucos dias antes da crônica ser publicada, um
vereador afirmou em discurso que os mendigos deveriam virar "ração pra
peixe". Com esse pano de fundo, ser "apenas" racista, machista,
homo e demofóbico pode não soar absurdo. Quem se chocou achou o personagem
equivocado, mas plausível.
Quem
me cumprimentou achou minha "análise" perfeitamente coerente. Ora, só
dá para concordar com o texto se você acreditar que as cotas criaram uma elite
negra e oprimiram os brancos, acabando com a "meritocracia que reinava por
estes costados desde a chegada de Cabral", se achar que os 20 anos de
ditadura foram "20 anos de paz" e que é legítimo e bem-vindo
levantar-se contra "as bichas" e "o crioléu".
Em
"Hanna e Suas Irmãs", do Woody Allen, Lee, uma das irmãs, é casada
com um intelectual rabugento chamado Frederick. Lá pelas tantas, o personagem
assiste a um documentário sobre Auschwitz, em que o narrador indaga "como
isso foi possível?". Frederick bufa e resmunga: "A pergunta não é
essa! Do jeito que as pessoas são, a pergunta é: como não acontece mais
vezes?". Esta semana, diante dos e-mails elogiosos que recebi, a fala me
voltou algumas vezes à memória: "Como não acontece mais vezes?".
Vontade é o que não falta, por aí --e, infelizmente, não estou sendo irônico
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