segunda-feira, 4 de novembro de 2013


04 de novembro de 2013 | N° 17604
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

Uma nota de cem

A tira de papel amarelo que me serve o extrato bancário adiciona desta vez ao habitual coquetel de números em visível emagrecimento um anúncio de seguro. E acrescenta: Faça já o Seu e garanta o Seu projeto de vida. Descontada a repetição do pronome pessoal, num idioma que, bem traçado, será inculto e belo, mas jamais redundante, a frase me põe a pensar, não no produto apregoado, mas no argumento usado pela agência de publicidade do reclame.

É que, e desculpem tocar no assunto, nesta minha atual milhagem da idade madura continuo absolutamente incerto, para não dizer indeciso, irresoluto, hesitante, vário, instável, inconstante, vago, até algo distraído do que seja afinal meu projeto de vida.

Conheço pessoas que desde a mais longínqua infância sabem exatamente o que querem: abrir a barriga do próximo, reger uma orquestra, livrar o pai da forca, erguer torres espelhadas de aço e vidro, descobrir uma ilha de improvável latitude entre o céu e o mar. Já eu sou um desastre: nunca consegui ir além de uma duvidosa inclinação por juntar letras e com elas ir compondo hoje uns pensamentos baldios, amanhã uma história de que não sei o fim, quase sempre entregando trechos de uma precária, contingente, instável humanidade.

Convenhamos que não são planos bonitos. Com esses rascunhos de existência, assim tão frágeis e transitórios, nunca que vou ganhar um Prêmio Nobel. Acho que nem chegarei a síndico do meu prédio. (O outro dia, no elevador, uma senhorita depositou em mim um olhar desgostoso, quase penalizado: era a súbita intuição da minha menos-valia.) Não creio que vá vencer também este concurso de quadrinhas, cujo regulamento me chegou agora pelos Correios, aliás sem eu ter pedido.

Não terei nem por sonho uma dessas imensas caminhonetes que atrolham a garagem do edifício ou os trajes bem cortados e as gravatas italianas do meu vizinho do 2604, um que é pastor dotado de igreja própria. E já perdi toda esperança de me converter em senhor e dono de uma dama que mora neste bairro, a deslumbrante, a etérea, a magnífica, a que passa por mim com olhar ausente de deusa romana, tipo saída de uma nota de cem reais, só que sem aquele nariz enorme, só que muito linda.

Talvez fosse agora o tempo de me dedicar a ofícios sólidos e sérios, como os de filatelista, numismata, caçador de borboletas, adestrador de cães, chefe de cozinha. Mas me bate então a noção de que para tanto me faltam engenho e arte, sou inteiramente desprovido de talento, sou completamente falho de gênio.

E aí tolamente, como o cão que jamais adestrarei, vou tecendo estas linhas numa tela, estas frases que jamais a bela, a excelsa, a egrégia, a donairosa, a linda, a pérfida, me dará a graça de ler.


Nenhum comentário: