quarta-feira, 15 de abril de 2009



15 de abril de 2009
N° 15939 - DAVID COIMBRA


O dia em que o joguinho parou

Só por algo muito grave a gente interrompia o joguinho. Uma vez estávamos ali no areão do Alim Pedro, pelada dureza, golerinha de tijolo, com camisa contra sem camisa, e aí apareceu o Casaca. Veio gingando, mas gingando ligeiro, decidido, em passo de brabo.

Dava para ver que vinha por serviço. O Casaca era um traficante do bairro. Não se podia dizer que fosse um grande empreendedor, mas tinha fama de mau. Quem devesse ao Casaca, pagava. De um jeito ou de outro.

Naquele dia, ele andava atrás de um guri que lhe devia algum. Não lembro o nome do guri, lembro dele: magrinho, usava bermuda meio floreada, meio cor de laranja, e uma camiseta que hoje chamam de regata, antes era de física. O guri, ao botar o olho no Casaca, largou o jogo. Saiu na tal desabalada carreira. O Casaca zuniu atrás, gritando vem cá, desgraçado, eu te mato, desgraçado. O jogo acabou ali. Fomos atrás para ver o que dava.

O guri correndo, o Casaca correndo, nós todos correndo. Na altura da mercearia da Industriários, o Casaca o alcançou. Esticou o braço e o puxou pela nuca. Paramos. De um golpe, o Casaca baixou a bermuda do guri até os tornozelos. Agachou-se. Apoiou um joelho na laje. E então surgiu em sua mão um daqueles canivetes de mola e ele acionou a mola e a lâmina saltou num clec. Fizemos ó.

– Óóóóóóóóó...

Aí o Casaca tomou entre os dedos indicador e polegar da mão esquerda o pequeno e murcho e tristonho pênis do rapaz. Em seguida, aproximou o canivete do membro, mas aproximou mesmo, aproximou bem aproximado, e berrou:

– Eu vou cortar teu tico!

O guri, com as mãos postas, chorava e implorava: – Não, Casaca, pelo amor de Deus, Casaca!

O Casaca passava a lâmina no caule do membro e repetia: – Eu vou cortar teu tico!!!

O guri aos prantos: – Por favor, não, Casaca! Eu pago, Casaca! Eu juro que pago, Casaca!

Nós mudos e tensos, assistindo. – EU VOU CORTAR TEU TICO!

O rapaz soluçava: – Pelamordedeus, Casaaaacaaaaaa...

– EU VOU CORTAR TEU TICOOOOOO!!!

Aquilo não terminava mais. Suponho que para o guri deve ter durado uma vida. Mas o Casaca terminou não lhe cortando o tico. Nos dispersamos entre aliviados e, confesso, um pouco decepcionados. Não houve ação, afinal.

Uns dez dias depois lá estávamos nós no areão do Alim Pedro outra vez, em outra peladinha renhida. O guri, com o pênis intacto e o orgulho nem tanto, jogava também. De repente, ele parou. Estava com a bola nos pés e parou. Olhou para o outro lado da Industriários, onde havia um armazém. De lá vinha uma senhora miúda, pequena, mas que parecia muito decidida. Marchava de um lado para outro da rua, pisando sobre um grande anúncio da Pepsi pintado no asfalto.

– Moleque! – ela gritou.

– Mãe! – disse o guri.

– Moleque! – ela repetiu, avançando sempre.

E invadiu nossa cancha de areão, rumando direto para o filho, que a fitava paralisado, a bola nos pés.

– Meu rádio! – a mulher urrou quando alcançou o guri. – Tu vendeu o meu rádio!

Pegou-o pela orelha e a torceu. O guri se encolheu todo, gemendo:

– Ai, ui, ai, ui, mãe! Ai, mãe!

– Como é que eu vou ouvir o Sayão Lobato agora?!! – ralhou ela, puxando-o pelo lóbulo. E, enquanto o arrastava IAPI afora, rosnava: – Tu sabe que eu não fico sem o não diga não, moleque! Safado! Maconheiro!

Assim, ela o levou de lá. O guri nunca mais voltou. Ser por duas vezes a causa da interrupção do joguinho era mesmo uma vergonha insuportável.

Nenhum comentário: