quarta-feira, 15 de abril de 2009



15 de abril de 2009
N° 15939 - DIANA CORSO


Os ovos

Quando a conheci, ela tinha 77 anos e problemas de 47, já vão uns 10 anos. Dilemas de amor e conflitos com a mãe envelhecida. Vou chamá-la de dona Irma. Semana passada, encontrei sua neta e soube que continua lúcida, curiosa, conectada. Senti saudades, foi minha paciente, mas me ensinou muita coisa.

Certo evento da sua vida, entre o cômico e o trágico, transformou-se para nós duas em ensinamento: dona Irma resolveu fazer um doce, daqueles que levam dúzias de ovos. Foi ao armazém comprá-los e, na volta, levou um tombo daqueles.

O que causou graça foi o fato de que, embora ela tenha ficado toda lanhada, nada quebrou, os ovos ficaram intactos. Resmunguei que isso fora uma temeridade, que ela deveria ter cuidado seu corpo, e não os ovos, mais fáceis de substituir. Inútil, dona Irma tinha outras prioridades.

Ao contrário do que se diz, vão-se os anéis, ficam os dedos; neste caso, foi-se o corpo, ficaram os ovos. Esses ovos representavam algo que ela queria muito fazer, tanto que se esquecera do corpo.

Sei que para uma pessoa idosa cair é muito arriscado, algumas coisas quebram e não colam. Na velhice, quando o corpo se torna nosso inimigo, fica difícil manter o pique. Dona Irma conseguiu, porque a prioridade eram os ovos.

Esses moços, que passam na academia horas e dias a fio, esquecidos dos ovos, vivem como velhos, reduzidos aos cuidados com a saúde, no culto de um corpo inutilmente forte. Correm na esteira, sem ir a lugar algum, fazem uma força danada, que não constrói nem transporta nada. Pobres moços, ah se soubessem o que dona Irma sabe, não malhariam tanto e fariam mais doces que levam dúzias de ovos.

Os bebês muito pequenos não compreendem os limites entre seu corpo e o mundo externo: quando assolados por uma dor, reagem com a fúria de um país em guerra. Já os velhos, assombrados pelas crescentes limitações, veem suas possibilidades de circulação reduzidas a cada ano.

Observamos, então, que libertar-se das exigências do corpo é uma das benesses da juventude, período que dura pouco, aliás. Por que então passar esses poucos anos, os únicos de liberdade, dedicados à tirania da carne?

Dizem que depois de certa idade, de uns 40 em diante, quando acordamos e não sentimos nada doendo, é bom conferir o obituário do jornal: pode ser que estejamos mortos. Resta-nos a lição de dona Irma: preocupem-se com os ovos. A força de viver reside na vontade de desejar coisas para além de nós.

Nenhum comentário: