sexta-feira, 21 de setembro de 2007

No Alegrete



21 de setembro de 2007
N° 15373 - David Coimbra


No Alegrete

Eu não conhecia o Alegrete. Isso que meu pai era de lá. Sim, o velho Gaudêncio Coimbra pegava touros pelas guampas e os derrubava no chão duro da estância e os imobilizava em átimos.

Átimos! É, os Coimbra têm história no Alegrete. Mas, como disse, nunca sequer estivera na região. Até que, já adulto, trabalhando como freelancer para uma revista semanal, tive de fazer uma matéria na cidade.

Fui de ônibus, cheguei antes do amanhecer, o céu azul-escuro, ainda estrelas faiscando. Ao caminhar pelo centro, ouvi um chiar de rádio atrás de uma janela cerrada:

- Abraço ao Coimbra, nosso ouvinte!

Não se tratava deste vivente aqui, claro, mas peguei o abraço emprestado, como uma saudação. Era uma emoção finalmente pisar nas calçadas da cidade mais gaúcha do Rio Grande, a cidade farroupilha, a cidade do meu pai!

Fiz as entrevistas que tinha de fazer, trabalhei duro a manhã inteira e, no começo da tarde, resolvi deliciar-me com um churrasco alegretense.

Escolhi uma churrascaria que funcionava com um sistema original: o freguês escolhia a carne que ia trinchar. Pois bem. Apontei para um pedaço rosado de picanha e me abanquei. Na mesa ao lado da minha sentaram-se dois gaudérios. Mas gaudérios! Índios velhos daqueles bem típicos da campanha.

Sob a mesa havia cordame e fumo em rama e outros materiais que eles decerto tinham comprado na cidade a fim de levar para o campo. Estavam ambos pilchados, suas peles eram tisnadas do sol da lida diária, as mãos calosas e as expressões severas.

Observei-os durante todo o almoço. Comeram em silêncio grave, não trocaram uma só palavra. Vez em quando, aquele que parecia ser o chefe, talvez o capataz, fazia um gesto, e o outro, em obediência, atirava-lhe algo.

O saleiro, por exemplo. E o chefe apanhava o saleiro no ar, rápido feito a ema, e nem agradecia.

Enquanto eles estavam concentrados na refeição, eu pensava: aí está a essência do Rio Grande! O gaúcho primordial! O cerne do Pampa!

Aí estão resumidas nossas tradições farrapas, nossas guerras fronteiriças, nosso caráter! Ainda existe o gaúcho, sim, senhor!, e só aqui, no Alegrete, é que se poderiam encontrar espécimes que tais!

Tudo isso eu pensava, e muito mais, quando algo aconteceu. Encerrado o almoço, escarvados os dentes, os dois ficaram se olhando. Era a primeira vez que se miravam nos olhos. Compreendi que aquele olhar não se dava em vão.

Que havia um significado naquele momento. Eles continuaram se encarando por mais alguns segundos. Então, o chefe fez um aceno com a cabeça. Como se dissesse: "É chegada a hora".

O outro balançou a cabeça devagar, em concordância. Alguma coisa ocorreria ali, diante de mim. O capataz se empertigou. O outro também. E eu, na minha cadeira, entesei de expectativa. Fitando sempre o colega, o capataz tirou a mão da mesa.

Ergueu-a um pouco. Enfiou-a no bolso direito da bombacha. O outro ficou olhando. Eu fiquei olhando. Tinha a impressão de que o bar inteiro olhava.

A mão quedou-se alguns segundos no bolso da bombacha. E de lá foi saindo. Foi saindo. Saindo. Até que vi. Vi: o gaudério sacou uma raspadinha da Xuxa e, com a ponta da língua entre dentes, sob o olhar fascinado do colega, usou a unha grossa do dedão para procurar o prêmio.

Nem o Alegrete profundo resistiu à globalização.

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