quarta-feira, 2 de maio de 2018



02 DE MAIO DE 2018
NÍLSON SOUZA

O foro dos bichos

Não sou um constitucionalista, como o senhor Michel Temer, nem um ministro do Supremo, com poderes para interpretar a Constituição de acordo com a vaidade relativa do ar. Mas sou um cidadão que aprendeu a ler e que se esforça para entender o sentido dos textos legais, assim como a intenção dos legisladores que os redigiram. Às vezes, tenho dúvidas, confesso, mas para eles é que não vou perguntar, pois não quero incorrer naquela inconveniência denunciada pelo poeta Mario Quintana:

- Quando alguém pergunta a um autor o que ele quis dizer, um dos dois é burro.

Tenho lido e relido a nossa Constituição Federal para tentar entender por que nem sempre vale o que está escrito. Veja-se, por exemplo, o enunciado do artigo 5º: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Bonito e democrático, mas incompatível com o foro privilegiado, que garante impunidade aos ocupantes do andar de cima.

Sempre que o assunto volta à pauta, lembro-me da Revolução dos Bichos, do britânico George Orwell. Tão logo os animais assumiram o comando da granja, pregaram seus mandamentos na porta do celeiro. O sétimo dizia: "Todos os animais são iguais". Com algumas semanas de poder, porém, os líderes do movimento alteraram a regra para: "Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros".

Pois aqui na pátria amada, não são alguns, são muitos. Estudo feito pela Consultoria Legislativa do Senado mostra que nada menos do que 54.990 autoridades brasileiras desfrutam atualmente do direito de serem julgadas apenas por tribunais de instâncias superiores - porta escancarada para a prescrição. O Brasil é recordista absoluto na concessão dessa prerrogativa a políticos.

Há outros preceitos constitucionais que não fecham com a realidade. O mais polêmico do momento é, certamente, o inciso LVII do próprio artigo 5º, que diz que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Como a garantia constitucional se transformou em salvo-conduto para criminosos e corruptos, acabou sendo suspensa no jeitinho pelo STF. Também apoio julgamentos mais céleres e punições mais eficazes, mas não posso ignorar a interpretação casuística.

O que fazer, então, diante de leis bem-intencionadas que acabam sendo deturpadas? O certo seria revisar a Constituição. Mas, aí, só com uma Constituinte exclusiva, formada por convocação popular, sem as figurinhas carimbadas da cleptocracia nacional. Quase uma revolução dos bichos.

NÍLSON SOUZA

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